Olhares diversos sobre o percurso histórico do FSM foram apresentados no seminário “Fórum Social Mundial Rumo a Túnis”, que aconteceu entre os dias 22 e 24 últimos, na Biblioteca Pública dos Barris, em Salvador (BA). Cerca de 200 militantes de várias temáticas, movimentos sociais, centrais sindicais e outras organizações não governamentais debateram com históricos construtores do FSM, com membros do seu Conselho Internacional (CI), a atualidade da luta por outro mundo possível. Todos concordam que o capitalismo está na ofensiva na luta global, utilizando muita propaganda, opressão e violência para destruir o planeta e a humanidade e o seminário debateu o quanto o FSM ainda é capaz de mudar o mundo e como fazer isso. A resistência aos opressores nunca parou, ao contrário, mas a sonhada unidade dos movimentos anticapitalistas de todo o mundo parece distante, com tantas disputas em curso. O seminário baiano dá seqüência às discussões sobre os rumos do FSM no Brasil, realizadas na edição temática de 2014 Porto Alegre e em seminário acontecido em SP novembro último.
“Qual o sentido de levar o FSM em frente? Como ganhar forças que nos aproximem dos nossos sonhos comuns?”, perguntou Sheila Ceccon, do Instituto Paulo Freire e atuante na área de meio ambiente e educação, na rodada sobre o futuro do FSM. “Há um recrudescimento do capitalismo no mundo e cresce a importância da sociedade civil dar respostas a isso. É importante colocar novos atores, energias novas, novos movimentos no FSM”. No Brasil, a maioria sente falta dessa renovada presença, sobretudo da juventude. Muitos dos coletivos e partidos que compõem os novos movimentos fazem parte da oposição pela esquerda ao governo Dilma e consideram o processo do FSM em nosso país institucionalizado demais, sustentado apenas por governistas. Existe o receio de que o mesmo aconteça com a política e os movimentos sociais nos países que agora sediam o processo.
Por isso, foi importante a presença do MPL (Movimento Passe Livre) no seminário internacional, com representantes de SP e de Salvador. Destaques também para os jovens artistas que mostraram muita poesia, dança e música entre um debate e outro, arte engajada na transformação da sociedade. Cerca de 400 internautas acompanharam on-line os debates. “Esta articulação que vemos na BA é animadora, nos fortalece”, disse Sheila, acrescentando os relatos positivos vindos da Tunísia e do Marrocos. Representando o Comitê Organizador Tunisiano, o antropólogo Alaa Talbi nos falou da força que o FSM deu à perspectiva de democratização da Tunísia, com o crescimento das organizações sociais e das redes. “O resultado foi a nova constituição adotada, as eleições legislativas e presidencial em novembro, onde membros do FSM tornaram-se representantes políticos, deputados e ministros”, analisa Talbi. Vai ser muito interessante acompanhar o novo governo tunisiano e a atuação dessas lideranças, isto também aconteceu no recente processo histórico brasileiro.
Olhares sobre o percurso histórico do FSM
Com certeza, o FSM de 2013, realizado em Túnis, foi edição comparável àquelas primeiras em Porto Alegre e, provavelmente, o melhor realizado na África (também no Quênia e Senegal). Hamouda Soubhi, diretor executivo da Rede Marroquina das ONGS Européias e Mediterrâneas e co-fundador do Fórum das Alternativas do Sul no Marrocos, lembrou que além dos fóruns mundiais, a África realizou 40 fóruns temáticos e 7 fóruns africanos (continental, algo que aqui na América Latina não conseguimos fazer, o Fórum Social Américas há anos não acontece). “Onde colocarem o dedo no mapa da África haverá um conflito, proveniente das apropriações dos ocidentais”, disse Soubhi, que também defende a importância do encontro internacional. “Com o FSM nasceram várias redes de saúde, da educação, das mulheres, a Marcha Mundial das Mulheres. Todos esses fóruns permitiram quebrar as clausuras existentes na África, nos encontrarmos em Mali, na Tunísia, na África do Sul, no Marrocos e pudemos fazer esses encontros apesar da falta de recursos. Sabemos que é muito difícil construir esse outro mundo, mas acreditamos ter força para mudá-lo, com os jovens principalmente”.
Hamoud Soubhi e Alaa Talbi
Quem esteve no Senegal e na Tunísia, não pode negar a importância do FSM e sua inserção naquela conjuntura de levantes populares que seguem seu curso desde a Primavera Árabe. Entretanto, o Brasil (e outros países latino-americanos) vive uma conjuntura de adequação política à nossa tortuosa democracia representativa, realizada por governos e partidos que têm em seus quadros lideranças ligadas à gênese do FSM, mas que não têm força para enfrentar as corporações capitalistas. Um dos mais importantes organizadores do seminário de Salvador, Damien Hazard, diretor da Abong (Associação Brasileira de Ongs) e da organização Vida Brasil, integrante do Comitê Baiano do FSM, do CI e do GT Brasileiro Rumo a Túnis, acredita que o FSM tem importância histórica comparável a grandes eventos que mudaram a vida dos povos. “O FSM nasceu 14 anos atrás reacendendo a chama da utopia e as organizações brasileiras tiveram papel histórico”, avaliou Hazard, recordando os vários fóruns locais, temáticos e brasileiros que realizamos. Um Fórum Social Mundial da Biodiversidade está acontecendo estes dias em Manaus, também rumo à Tunísia. “Muitos aqui sentem que o Fórum se afastou, mas apenas foi para a África, onde a chama da utopia continua viva. Uma mudança geográfica, mas o mundo também mudou”.
Institucionalização ou construção do possível?
“Temos o governo, mas não temos o poder”, respondeu a uma crítica sobre a institucionalização do Fórum Salete Valesan, diretora da FLACSO Brasil (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), militante de movimentos sociais e populares, uma das principais organizadoras do Fórum Social Mundial e do Fórum Mundial de Educação desde 2000. “A agilidade e perversidade com que se refaz no mundo o neoliberalismo, o pensamento único, não nos faz pessoas menos esperançosas”, disse Valesan. “E se outro mundo é possível só pode ser construído com as possibilidades que temos enquanto seres humanos. Devemos reconhecer as conquistas que tivemos com o governo, mas queremos o poder”. Hamouda Soubhi também defendeu a participação na organização do Fórum Mundial de Direitos Humanos no Marrocos, ocorrido em dezembro de 2014, ao responder uma questão sobre a incoerência desse feito. Para ele, a luta para que o governo marroquino respeite os direitos humanos ganhou com a organização do FMDH lá. “As mulheres da nossa região estão organizando o Fórum das Mulheres, nos próximos dias 12 a 15 acontecerá uma reunião africana para preparar a assembléia das mulheres que abrirá o FSM”, exemplifica Soubhi. “Somos solidários com a luta palestina, a luta pelas terras dos saaraui, escutamos a sociedade civil e as soluções que vem deles, a liberdade se conquista, ninguém vai dá-la!”
Afinal, o Estado sempre socorreu a burguesia; banqueiros, latifundiários e industriais nunca tiveram pudor em utilizar o dinheiro público. O apoio material e institucional para a realização dos eventos do FSM é saudado pela maioria das organizações como uma conquista. “O suporte para viabilizar os encontros e debates da sociedade civil que se mobiliza por direitos deveria ser política de Estado e não de governo”, opina Rita Freire, facilitadora da Ciranda, membro do Conselho Internacional do FSM e integrante do GT do FMML (Fórum Mundial de Mídias Livres). A midialivrista lembra que hoje os movimentos apresentam projetos onde há possibilidade de apoio, mas nem sempre encontram interlocutores sensíveis às causas sociais. “Isso obriga os movimentos a se preocuparem permanentemente com a questão da autonomia, e vigiar para que a viabilização dos encontros não implique em uma relação de cooptação, clientelismo, fisiologismo. O FSM deve pressionar por políticas mais permanentes de respeito e apoio à mobilização da sociedade civil, que é o oposto da prática histórica no Brasil, que é a criminalização”. O seminário baiano teve em pauta também informações sobre o projeto que apoiará a delegação brasileira, como se inscrever para concorrer e os critérios para a composição dessa representação.
A metodologia do FSM e a comunicação compartilhada dão ao Brasil um importante papel desde o início deste processo global. O protagonismo das nossas organizações é reconhecido por todos, de militantes dos outros países até o governo brasileiro, que continua a apoiar o FSM. “Em alguns momentos, ser governo é ser militante de esquerda também”, afirmou no debate Mauri Cruz, diretor da Abong no RS e do comitê local do FSM, criticando a atomização de nossas lutas, por conta de opiniões diferentes em relação aos governos. “O mundo mudou, sonhos do Fórum foram incorporados por governos da América Latina, estão se implantando pequenas mudanças enquanto o capital continua sendo a égide do pensamento das pessoas. A inclusão social pelo consumo faz parte da fase de acumulação de forças, neste momento de acumulo dos governos populares”. Para Leonardo Vieira, da Secretaria de Relações Internacionais da CUT (Central Única dos Trabalhadores), é difícil o momento do mundo e do Brasil, mas precisamos fugir das duas posições imobilizadoras – tudo vai dar certo ou não adianta fazer nada. “A humanidade dá saltos de consciência às vezes. A Tunísia mostra que há vitalidade no processo, mas a presença brasileira ainda é importante e precisamos ver o que temos em comum para enfrentar as dificuldades”.
Democratizar para internacionalizar as lutas
Em defesa dos bens comuns e na luta anticapitalista, as organizações que constroem o FSM continuam a ter em comum os 14 pontos de princípios, assumidos lá em 2001. “Os pontos são atuais onde seja que estejamos engajados”, lembrou, na mesa de abertura, Jussara Santana, da Associação Cultural Espiral do Reggae, do CONEN (Coordenação Nacional das Entidades Negras) e do Coletivo Baiano do FSM. Ela saudou a diversidade presente na plenária, a ousadia da juventude com sua poesia e rap para revolucionar, e lembrou alguns dos princípios do FSM. São definições importantes para a militância anticapitalista que se afastou do FSM, ou que nunca se aproximou deste “espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de idéias, a formulação de propostas e articulação de ações”. Sem hierarquias, na base da cooperação e da troca de experiências, uniram-se “entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo”.
O FSM quer continuar a ser “um processo permanente de busca e construção de alternativas” em espaço “plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário”. O FSM nunca pretendeu ser uma instância representativa da sociedade civil mundial, nem instância qualquer de poder a ser disputado, “nem pretende se constituir em única alternativa de articulação e ação das entidades e movimentos que dele participem”. A contraposição “ao processo de globalização comandado pelas corporações multinacionais, governos e instituições internacionais a serviço de seus interesses” é a liga que unifica os lutadores sociais da América Latina ou da África. Soubhi considera estratégica a decisão de fazer novo encontro na Tunísia, pois a situação no continente só piora. “Basta ver o cemitério que se tornou o Mar Mediterrâneo, com tantos africanos mortos ao tentar atravessar para a Europa”, exemplificou.
“Preparando este próximo FSM definimos temáticas novas que emergem atualmente – a persistência da dominação neoliberal e a ‘ financeirização’ do mundo, a exploração das desigualdades, as guerras, a interpretação da democracia política, os limites dos movimentos sociais”, disse Soubhi, que também faz parte do CI do FSM. “Não faremos esse trabalho se não houver unificação das lutas, contra a violência como meio de resolução dos conflitos é preciso lutar contra a impunidade, fazer campanhas contra o armamento, contra o reinvestimento nas guerras, lançar campanhas contra a xenofobia, o racismo, a violência contra as mulheres. Convidamos a todos a participar na Tunísia para convergência de nossas lutas, pela paz, democracia e justiça social, para uma paz duradoura na África, pela luta dos afro-americanos e dos afro-brasileiros”. Alaa Talbi convidou todos a irem à Túnis, comemorou que 1.700 organizações já estavam inscritas para o FSM 2015, e lamentou que apenas 3% delas fossem da América Latina. No Brasil, está aberto o processo de recebimento de solicitações de apoio à participação no Fórum até o dia 5 de fevereiro de 2015. As organizações, movimentos ou coletivos devem estar em alguma atividade inscrita para a edição da Tunísia, entre 24 e 28 de março de 2015. Na definição da delegação, o Coletivo de Facilitação rumo ao FSM 2015 aplicará critérios como o equilíbrio geográfico, diversidade de organizações e movimentos, de temáticas, de gênero e raça.