Ei… rapaz! Pegou essa camisa onde, negão?

“- Rapaz… preciso falar com você. Aconteceu um lance desagradável nesse Carnaval comigo.

– Qual foi?

– Fui impedido de entrar em um camarote no qual já estava… saí para ver minha esposa e, quando retornei, fui impedido porque estava sem o ingresso, embora a camisa fosse o suficiente para entrar e eu já estava lá dentro antes.

– E aí?

– E aí? Quando questionei o porquê de outras pessoas adentrarem sem ingresso, só com a camisa, como eu, o cara me disse: “não me interessam os outros, mas saber onde você pegou essa camisa, negão… Aqui não é espaço pra você.” A partir daí me vi cercado de seguranças tão negros como eu… pira aí, bicho!

– O pior, irmão, é que nenhuma guarnição da [Polícia Militar] PM quis me acompanhar para prender o segurança, tive que insistir muito para que, no terceiro posto da Civil no circuito do Carnaval, eles registrarem a ocorrência.”

Esta é uma história real que ocorreu no Carnaval de Salvador, em 2016, em um grande camarote organizado por uma emissora de televisão. Poderia ser um dos inúmeros casos que entrariam no esquecimento, relacionados aos crimes de racismo e injúria racial. Entretanto, tem um “dendê” ou uma “pimenta malagueta” a mais em relação ao racismo institucional enfrentado pela vítima.

Inicialmente, cabe distinguir o crime de racismo da injúria racial, pois o racismo está previsto nos arts. 3º a 20º da Lei n. 7.716, de 05 de janeiro de 1989, cujos bens jurídicos protegidos são a igualdade e a proteção à dignidade..

Objetivamente, o crime de racismo se constitui no ato de impedir a vítima de entrar em estabelecimentos escolares, festivos ou criar obstáculos para que a pessoa não utilize serviços, assuma empregos, cargos públicos e privados em razão da cor ou de questões raciais. Ademais, o crime de racismo é “[…] inafiançável e imprescritível […]”, conforme o art. 5°, inciso XLII da Constituição Federal de 1988.

Por outro lado, a injúria racial protege a honra subjetiva, ou seja, o que o indivíduo pensa de si diante de uma ofensa moral com relação à sua origem étnica, conforme o § 3º do art. 140 do Código Penal brasileiro.

Não é novidade que, no Carnaval soteropolitano, o “mito da democracia racial” – traçado por Freyre (2003) em “Casa Grande e Senzala” –, mostra, ao mais preguiçoso observador, a falsidade desta igualdade de condições de convivência e tratamento entre negros e brancos nos espaços momescos.

Para quem tem mais de 30 anos, como eu, guardam-se bem, na memória, os critérios de seleção de “gente bonita” dos grandes blocos carnavalescos tradicionais de Salvador, cuja ficha de inscrição com a foto 3×4 e o indispensável registro obrigatório de endereço determinavam a escolha de um público branco dos bairros ricos ou de classe média alta.

Na “pipoca” espremida por cordeiros negros e “fantadas” da “[…] fila de soldados, quase todos pretos […] Dando porrada na nuca de malandros pretos” – como na música Haiti (1993) – o “batifum”, para além de uma luta imaginária das espadas de Ogum (uma viagem interpretativa minha…) é o local de privação e luta por poucos espaços que sobram do que foi ocupado pela Casa Grande, garantido a este grupo o seu direito de pular e beber em paz, com proteção e conforto. Ainda bem que, pelo menos, “a praça Castro Alves é do povo […]” – como diria a música Um Frevo Novo (1972) –, como a pipoca do Kanário, Armandinho, Luiz Caldas… pelo menos.

Portanto, no Carnaval da Bahia, o racismo não é novidade, sem falar na Axé Music (aí é outro pano pra manga).

O estarrecedor deste enredo é a postura dos agentes públicos em alguns casos. O racismo praticado por certos policiais era algo “normal ou coisas do Carnaval” – palavras ditas no contexto pelos policiais à vítima–, ou, ainda,quando a pessoa que foi vítima do racismo relatado no início desse texto foi procurar a Polícia Civil, mas não conseguiu registrar a ocorrência.

Na interpretação do policial civil, este racismo sofrido era um caso banal que não justificaria a sua atuação e deslocamento. Isto é uma perversa face do racismo praticado pelo Estado: o racismo institucional, nessa situação, ao agir com “pouco caso”com a dor da vítima de tais atos.

Ao se recompor do abalo moral a vítima deste enredo – que é advogado, inclusive compositor de sucessos da música baiana –, reverberou sua dor em diversos espaços institucionais, culturais e políticos – como o Ministério Público, Afro-gabinete de Articulação Institucional e Jurídica (AGANJU) e o blog de João Jorge do Olodum –, o que resultou numa intimação para depor na Delegacia do Rio Vermelho sobre o ocorrido, mas apenas sete meses depois do Carnaval e, para a nossa surpresa, a suposta ocorrência registrada – em sua terceira tentativa no circuito do Carnaval–, sequer foi formalmente lavrada, ou seja, ela não existia.

Um menino negro sendo vítima de racismo pelo segurança de um grande shopping de Salvador, em algo parecido com o que foi vivido pelo nosso personagem aqui. Será algo pontual?

Quando a vítima é o negro, como neste caso, são enfrentadas estas barreiras para tentar punir o autor do crime de racismo e também de injúria racial.

As pessoas amenizam a agressão do racista com frases do tipo “não foi bem assim”, “o racismo tá na sua cabeça”, “a raça é humana”, “não sou racista, inclusive tenho amigos negros”.

Do contrário, quando estamos do outro lado, quando o negro é apontado como o criminoso, a punição se impõe e “dicomforça”, pois,infelizmente, ainda somos o alvo preferido do Estado para sermos presos e mortos. Quem mais morre, quem mais é encarcerada é a população jovem e negra de baixa renda dos bairros periféricos, pois o cárcere tem cor! – como disposto no filme Negro do canal humorístico Porta dos Fundos.

Pois bem, ao sairmos da Delegacia do Rio Vermelho, lembrei-me do poema “Gritaram-me negra”, de Santa Cruz. Todos os dias, há um grito explícito e velado que pretende demarcar espaços. É necessário não cair na infantil crença desta fábula da democracia racial, pois a punição penal brasileira é racista desde as ordenações do Brasil Colônia até a atualidade.

Ao final, nos indignamos, pensamos e resolvemos compor, pois “mesmo que o rádio não toque, mesmo que a TV não mostre Aqui vamos nós, cantando reggae, aleluia Jah!”, como na música Sangue Azul, de Gomes.

Axé e resistência!

Imagem: montagem ciranda.net ( Carnaval Bahia – Valter Pontes / SECOM)

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“Haiti”

CD Tropicália 2, 1993
Música: Gilberto Gil
Letra: Caetano Veloso

“Quando você for convidado para subir no adro da Fundação Casa Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
dando porrada na nuca de malandros pretos
de ladrões mulatos
e outros quase brancos
tratados como pretos
só para mostrar aos outros quase pretos
(e são quase todos pretos)
e aos quase brancos pobres como pretos
como é que pretos, pobres e mulatos
e quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados.
E não importa se os olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo
onde os escravos eram castigados.
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de meninos uniformizados
de escola secundária em dia de parada
e a grandeza épica de um povo em formação,
nos atrai, nos deslumbra e estimula.
Não importa nada:
nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico,
nem o disco de Paul Simon.
Ninguém,
ninguém é cidadão.
Se você for ver a festa do Pelô
e se você não for
pense no Haiti
reze pelo Haiti.
O Haiti é aquí
o Haiti não é aqui.”

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