Economia Criativa, Economia Solidária e a esquerda

Este texto deriva de minha preocupação em ver que termos como inovação, empreendedorismo e Economia Criativa vem sendo crescentemente utilizados no âmbito da esquerda.

Anima sua elaboração o fato de que, como disse o célebre Fritz Machlup, em 1963, “Um termo que tem tantos significados que nunca se consegue saber o que seus usuários estão falando deve ser retirado do vocabulário do estudioso ou ‘purificado’ de declarações confusas.”

Meu objetivo é, levando em conta o contexto que lhes dá origem, esclarecer o significado desses conceitos, e mostrar por que eles não deveriam ser usados fora deste contexto. Muito menos para pautar atributos ou comportamentos de atores sociais distintos daqueles com eles originariamente envolvidos; que são, majoritariamente, pessoas que comungam com os valores e interesses da classe proprietária.

Os atores que estão brotando dos movimentos populares que protagonizam as mudanças que a esquerda busca desencadear precisam ser municiados com a crítica a conceitos como os que aqui se trata.

Para não falar da urgência em explicitar a proposital dubiedade manipuladora de quem os emprega sem um mínimo de rigor analítico-conceitual para exaltar seus méritos para alavancar a competitividade e o desenvolvimento do país, a sustentabilidade, etc. Como dizem Pol & Ville (2009) referindo-se ao conceito aparentado: “inovação social é um termo que quase todo mundo gosta, mas ninguém tem certeza do que significa”.

Começo pelas semelhanças existentes entre a Economia Criativa e a Economia Solidária. E o faço indicando aquela que salta à vista: o momento do tempo e o evento causador que as originam.

Seu surgimento tem a ver com mudanças que o neoliberalismo e o modo como se desenvolve a tecnociência capitalista provocam, notadamente a partir dos anos 1990, nas relações sociais de produção. Em particular, aquela que se estabelece entre proprietários dos meios produção e trabalhadores intermediada pela contratação de força de trabalho, o emprego.

A primeira, a Economia Criativa (EC), nasce nas sociedades dos países capitalistas avançados em função, por um lado, das implicações do intenso ritmo da mudança tecnocientífica e da financeirização, da dificuldade que o capitalismo enfrenta para gerar empregos. E, por outro, da exploração das oportunidades econômicas associadas ao tipo de ativo cultural e educacional que caracteriza aquelas sociedades.

Filh@s das famílias ricas podem contar com seus pais para se manter enquanto absorvem na universidade um capital cognitivo que poderá torná-l@s independentes. Aquel@s que a riqueza familiar não alcança para que se tornem empresári@s irão, dada a escassez de bons empregos, se tornar empreendedor@s. Devido à sua condição cognitiva superior à média, o que é associado pelo senso comum capitalista a uma capacidade de serem mais criativ@s, el@s são capazes de rentabilizar seu capital cognitivo num espaço economicamente marginal, caracterizado pela informalidade das relações de trabalho denominado de “economia criativa”.

A segunda, a Economia Solidária (ES), surge no Brasil na mesma época no bojo de uma situação de intensa exclusão social e de uma dificuldade ainda maior do que a existente naqueles países para geração de emprego e salário. Baseada na propriedade coletiva dos meios de produção e na autogestão, a ES é para os cerca de 80 milhões de brasileiros em idade de trabalhar que nunca tiveram e muito provavelmente nunca terão emprego, a única saída da “economia infernal”. Paradoxalmente, entretanto, ela ocupa um espaço discursivo no âmbito da esquerda muito menos do que a EC. E, pior ainda, tem recebido, inclusive em governos de esquerda, muito menor apoio e recurso público.

Para resumir, se pode empregar o que se apreende como “razões e proporções”.

Pode-se dizer, assim, que a EC (em que os filhos da classe rica competirão entre si) está para a ES (à qual se irão incorporar os mais pobres) como o empreendedorismo (que aqueles colocarão em ação para competir usando a tecnociência capitalista) está para a solidariedade (que os mais pobres usarão para engatilhar a autogestão que alavancará a tecnociência solidária e lhes dará uma nova condição de cidadania). Isto é: EC/ES = empreendedorismo / solidariedade.

Também para resumir, como aconselha um texto desta natureza, vou adotar um outro expediente sinóptico: um quadro comparativo. O que segue permite contrastar a EC e a ES, ainda que correndo o risco de simplificar e generalizar demasiadamente coisas que devem ser melhor explicadas, referindo-as a alguns de seus atributos.

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Deixo às leitoras e leitores a tarefa de complexificar o quadro de modo a incorporar elementos que permitam enriquecer o debate.

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