Os tsunamis tecnológicos do futuro

Durante muito tempo, as esquerdas e os movimentos sociais relegaram ao segundo plano a tecnologia, considerando seus efeitos sempre como positivos, sinônimos de progresso da humanidade. O debate a respeito de seus rumos, diziam, não fazia parte da luta política. O primeiro abalo a essa idéia partiu do movimento ambientalista, que desmontou a tese de que a evolução tecnológica significaria sempre uma melhora na qualidade de vida.

Nesse mesmo sentido, o Fórum Social Mundial, nos debates promovidos pelas diversas organizações nesses anos, vem mostrando que a tecnologia também é política. “Aqueles que estão no poder promovem as que servem para aumentar sua força”, afirma a física e ambientalista indiana Vandana Shiva, presente no último FSM. Para ela, a tecnologia claramente funciona como um instrumento político.

Vandana, que critica duramente os efeitos da implantação das sementes geneticamente modificadas para os agricultores dos países subdesenvolvidos, questiona a idéia da tecnologia como um fim em si mesmo. “Hoje, ela é apresentada como parte da evolução humana, como algo natural.”

Ela qualifica a “boa” tecnologia como aquela que usa a menor quantidade possível de recursos para produzir coisas que melhoram a qualidade de nossas vidas. “Mas, a partir da Revolução Verde, passamos a colocar mais energia no sistema do que retiramos dele. Isso é regressão, não progresso.” A chamada Revolução Verde marca o período em que pesticidas e herbicidas passaram a ser usados intensamente na agricultura. Ela, porém, teve efeitos ambientais bastante graves, frutos do uso excessivo e indiscriminado desses produtos tóxicos.

Entre outras atividades, Vandana esteve presente, em Nairóbi, na conferência realizada pelo ETC Group, organização internacional da sociedade civil que investiga e promove iniciativas políticas sobre as novas tecnologias. Intitulado “Os Tsunamis Tecnológicos do Futuro”, o seminário procurou alertar sobre as implicações sociais e os perigos ambientais da convergência da nanotecnologia, da biotecnologia, da informática e da engenharia genética.

A nanotecnologia, em especial, foi tratada como o centro do “tsunami tecnológico”. Documento distribuído pelo ETC Group a define como “um conjunto de técnicas utilizadas para manipular a matéria em escala nano. Nano é uma medida, não um objeto. Um nanômetro equivale a um bilionésimo de um metro”. Para Vandana Shiva, o tamanho está se tornando algo político.

A ambientalista indiana afirma que é preciso observar os efeitos globais do desenvolvimento técnico, e não fazer análises isoladas. Ela dá como exemplo os moinhos ingleses, usados para tecelagem. “Em um primeiro momento, parece que foi um crescimento positivo da capacidade de produção. Mas, para dar conta disso, foi preciso raptar e escravizar africanos, levando-os à América para que produzissem algodão em um território que foi roubado dos indígenas.”

Remendos tecnológicos

Para Pat Mooney, diretor da entidade, os países do Norte estão se esquivando de enfrentar os problemas sociais e da justiça global ao oferecer “remendos tecnológicos” como solução para questões como a fome e a saúde. “Ao serem chamados por organizações do mundo todo a ‘transformar a pobreza em história’, os países mais ricos do mundo representados no G8 responderam com um ‘vamos transformar a pobreza em química’. Nunca houve, nem nunca haverá, uma solução tecnológica para um problema social.” Segundo ele, só em Nairóbi está prevista a instalação de três centros de biotecnologia. O mais caro deles, financiado pelas fundações Gates e Rockfeller, somará um investimento de mais de US$ 150 milhões. “A fome só vai acabar para aqueles que construírem os prédios”, ironiza Mooney.

A crítica aos “remendos tecnológicos” passa pelas soluções que governos de vários países, mas especialmente o dos Estados Unidos, estariam experimentando para combater o aquecimento global. Mooney conta que uma lei aprovada recentemente no Congresso estadunidense daria poderes ao governo Bush para fazer alterações propositais no clima global, violando o Acordo de Modificação do Meio Ambiente, documento assinado pelos principais países do mundo na década de 1970 – incluindo Estados Unidos e a então União Soviética. “O problema é que, ao tentar resfriar o clima ou tentar frear um furacão nos Estados Unidos, Bush mexerá com o clima do mundo todo”, alerta.

Mooney cita uma experiência conduzida por doze centros de pesquisas dos Estados Unidos cujo objetivo é fazer com que o oceano absorva mais gás carbônico, diminuindo os danos da emissão de gases que causam o efeito estufa. Usando da nanotecnologia, tenta-se “fertilizar” o oceano, produzindo fitoplâncton. O problema é que a experiência tem efeitos imprevisíveis sobre a biodiversidade marinha.


Controle e mitificação

Vandana Shiva afirma que a discussão da tecnologia está ligada à pobreza, a democracia e a liberdade. “[A tecnologia] pode destruir modos de vida, pois demanda recursos e controla aspectos do mercado. Como meio de controle e de ditadura, é uma dos métodos mais eficazes, pois é invisível, funciona insidiosamente e é um assunto bastante mitificado.” Pat Mooney afirma que hoje existe uma “Teologia da Tecnologia”.

No Fórum Social Mundial, a tecnologia normalmente é discutida junto com as questões de meio ambiente e soberania alimentar, dada a ameaça do monopólio das sementes, efeito do uso de transgênicos patenteados. O assunto também aparece nas sessões sobre mídia e cultura, ligada aos efeitos da internet e da informática sobre as leis atuais de direito autoral e aos novos modelos de compartilhamento da cultura sugeridos pelo movimento dos softwares livres. Mostrando como as elites e as corporações dão preferência aos modelos tecnológicos que os beneficiam, em detrimento de alternativas mais democráticas, o FSM ajuda a trazer novas organizações para um debate que se mostra cada vez mais relevante.

Original em: Revista Fórum

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *