Organizações buscam continuidade após agitação do Fórum

Há um mês, mais de 100 mil pessoas estiveram na Amazônia para discutir os problemas globais no Fórum Social Mundial (FSM) 2009. De acordo com os números divulgados pela organização, cidadãos de 142 países (dos cinco continentes) representaram mais de 5,8 mil organizações, entidades e redes sociais na capital paraense.

Depois de mais uma ampla rodada de discussões, intercâmbios e protestos reunidos sob o lema do “outro mundo possível”, o que mudou para quem vive no front dos tensos conflitos que se multiplicam nas bordas e no interior do cobiçado e estratégico bioma amazônico?

Para Dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu (Pará) e um dos principais porta-vozes da defesa dos direitos humanos na Amazônia, o Fórum Social Mundial foi propício no sentido de “socializar preocupações e anseios”. O FSM “não pode fazer decretos e legislar”, adverte o religioso, mas ajuda a “sensibilizar e conscientizar”, além de ampliar o arco de aliados. “Nesse sentido, acho que o Fórum é um momento ímpar como possibilidade de ultrapassarmos fronteiras”, complementa.

“Somos uma minoria ínfima contra um colosso que se levanta e se diz o dono da verdade e das decisões”, comenta Dom Erwin, que acumula o cargo de presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) permanece sob escolta policial por causa de ameaças de morte.

Ele próprio atribui essas ameaças à defesa incansável de três bandeiras causadoras de incômodo dentro e fora da Amazônia: a exigência da apuração e punição exemplares de todos os envolvidos no assassinato a tiros da missionária norte-americana Dorothy Stang, quatro anos atrás em Anapu (PA); o posicionamento contrário à construção da polêmica Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, no Rio Xingu, que para ele implica em “muita destruição [pois afetará diretamente a vida de povos indígenas, ribeirinhos, etc.] em benefício de poucos” (saiba mais sobre o assunto logo abaixo no subtítulo Barragens); e as denúncias de envolvimento de membros da elite local na exploração sexual de crianças e adolescentes na região em que atua.

O bispo enfatiza a existência de duas visões de desenvolvimento que continuarão em choque permanente depois do FSM 2009. “A primeira visão é essa de que a Amazônia nos sustenta e precisa ser explorada até o fim porque garante a nossa vida. Esse é o ponto de vista mais mercantilista, capitalista. A Amazônia dá e nós recebemos”, declara. “E a outra [visão] é a da Amazônia como chão dos povos, com um desenvolvimento que procura aproveitá-la no sentido de que não seja destruída”, acrescenta.

Segundo Dom Erwin, há muitos projetos pensados na matriz da primeira visão que “prometem muitas vantagens, mas são destruidores”. Nesse sentido, o religioso é direto: “Nós somos contra esses projetos. E isso provoca a reação daqueles que querem que esses projetos sejam implementados”.

Ele espera que a realização do primeiro Fórum Social Mundial na chamada Pan-Amazônia (que se espalha por nove países da América do Sul) contribua para que as preocupações apresentadas pelos participantes acerca do futuro da floresta “cale fundo no coração dos que nos escutam”. Otimista, ele aponta alguns resultados que considera concretos do FSM 2009. “Belém se tornou o foco do mundo e todas as autoridades constituídas sabem o que está acontecendo aqui. Esse povo nunca tem oportunidade de se manifestar. Esse ponto é um resultado positivo, sem dúvida”, assinala.

Na opinião do bispo, pensar que as coisas não vão dar em nada é um desperdício de energias. “Isso seria a maior frustração e paralisaria todo esse entusiasmo”, comenta Dom Erwin, que deu seu depoimento no Tribunal Popular sobre a Criminalização dos Movimentos Sociais durante o FSM 2009. Ele e outros defensores de direitos humanos – como José Batista Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá (PA), condenado a dois anos e meio de reclusão, sem direito a penas alternativas, sob a acusação de ter mantido funcionários em cárcere privado em manifestação de sem-terras no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1999 – participaram do julgamento dos movimentos sociais que condenou “as elites econômicas nacionais e internacionais, o aparato do Estado e a grande mídia comercial” como culpados pela criminalização.

Indígenas
Quem também participou do Tribunal Popular no FSM 2009 foi Dionito de Souza, do povo Macuxi, representante do Conselho Indígena de Roraima (CIR). O retrato pintado pela liderança da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol mostra os percalços para a efetivação prática dos direitos básicos das comunidades. Em dezembro do ano passado, oito dos 11 membros do Supremo Tribunal Federal (STF) se pronunciaram favoráveis à demarcação contínua da TI Raposa Serra do Sol, mas o ministro Marco Aurélio Mello pediu vistas em dobro: do pedido de cassação de liminar concedida em abril deste ano pelo próprio STF – que implicaria na retirada imediata dos fazendeiros que ainda estão no interior da TI – e do julgamento do mérito do processo – deflagrado pelo pedido dos senadores Augusto Botelho (PT-RR) e Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) que quer a redução da TI em fragmentos – que deve ser retomado nos próximos meses.

“Primeiro nós temos uma decisão que está muito demorada. E quando [do julgamento do mérito no STF] sai a ressalva do ministro [Menezes] Direito [que sacou 18 condições para a demarcação em área contínua], achamos complicado porque dá uma coisa e tira outra. Não concordamos muito com essas condições que estão colocando na Raposa Serra do Sol. O que nós queremos de fato é que se mantenha a Constituição em pé. E os povos indígenas não vão abrir mão dos seus direitos. Somos todos brasileiros”, testemunha Dionito. Números da organização do FSM 2009 contabilizaram a participação de 1,4 mil quilombolas e 1,9 mil indígenas de 120 povos.

Como o pedido de cassação de liminar também acabou sendo protelado, os arrozeiros continuam na TI Raposa Serra do Sol. De acordo com o representante do CIR, os produtores rurais “continuam ameaçando” os indígenas das etnias Macuxi, Wapixana, Ingaricó, Taurepang e Patamona. “Os pistoleiros andam de espreita entre as comunidades. Os próprios arrozeiros falam que vão continuar plantando e vão colhendo. Isso é uma ameaça muito grande para os povos indígenas. Ficamos impossibilitados de andar livremente, e de fazer nossos trabalhos para manter a vida”.

“Não houve reação nenhuma da Polícia Federal e nem da Força Nacional de Segurança. Esperamos que, com esse resultado de conclusão do julgamento, a desintrusão seja feita. A terra já foi demarcada, já foi homologada e todas as autoridades brasileiras já fizeram o seu papel”, coloca Dionito, do CIR. As carências na área da saúde e da educação também afetam a vida dos indígenas da Raposa Serra do Sol. “A gente está aguardando que o repasse da Funasa [Fundação Nacional de Saúde] seja feito logo por meio dos convênios. O sofrimento que está acontecendo lá é porque a educação também está fraca. É preciso um suporte maior. E condições para a comunidade trabalhar, principalmente na questão da agricultura”.

Barragens
A construção de grandes usinas hidrelétricas contidas no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) federal também deve continuar na Amazônia, independentemente das diversas manifestações ocorridas no FSM. Mesmo assim, o Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB) busca mostrar os problemas dessa opção. Mais de 300 usinas estão previstas para a região amazônica: as do Rio Madeira (Jirau e Santo Antônio), em Rondônia, estão em estágio mais avançado, a despeito da grita de moradores locais e ambientalistas; há planos para a concretização de seis usinas só no Rio Tapajós; e a UHE de Marabá, que não deve demorar muito mais na fila, deve impactar 40 mil pessoas.

“Trata-se de produção de energia barata para grandes empreendimentos”, define Daiane Hohn, da coordenação nacional do MAB. Outros dois objetivos associados ao primeiro, na visão de Daiane, seriam a expansão da malha de hidrovias para o escoamento de riquezas naturais e o aprofundamento da privatização da água como produto e não como patrimônio público.

O grande diferencial no caso dos povos da Amazônia, salienta Daiane, está na ligação extremamente forte das pessoas com os rios. O MAB estuda formas de construção de um projeto energético alternativo que atenda aos interesses populares, marcado pela soberania energética com base na participação. “Não somos contra as barragens em si, mas contra o modelo que está por trás delas”, emenda a integrante do movimento.

Agenda
Para as organizações, o FSM não terminou em Belém. Graça Costa, da Fase Amazônia, reconhece o acúmulo proporcionado pelo encontro internacional (em 2009, o Fórum Social Pan-Amazônico (FSPA) ocupou um dia especial dentro do FSM.), mas defende a tradução dessas lutas sociais em plataformas permanentes que possam dar suporte para mais avanços. De acordo com ela, os movimentos sociais amazônicos seguem vivenciando dificuldades de mobilização no enfrentamento de temas complexos como a migração.

São vários os desafios colocados: entre elas a revitalização dos Encontros Sem Fronteira (que aproximam povos e entidades fronteiriços como no caso de Roraima e Venezuela), a definição da capacidade real de articulação entre as representações da sociedade civil que atuam na região em prol de um outro projeto para a região contra o modelo hegemônico e a preparação do 5º FSPA, ainda sem data definida. Uma reunião para discutir essas questões foi marcada para 15 de junho, na capital do Pará.

Graça avalia que o caminho da institucionalização talvez não seja o mais proveitoso. “Já tivemos um conselho [do FSPA], que não deu certo. Precisamos seguir o ritmo de acordo com as possibilidades reais”, completa a integrante da Fase Amazônia. “Não podemos deixar que esse processo se perca”.

Em termos globais, além de datas como os Dia Internacional da Mulher e o Dia Internacional dos Trabalhadores Rurais, e da Cúpula do G-8 (em julho) e a Cúpula das Américas (em abril) e a Cúpula do Clima (em dezembro), movimentos que participaram do FSM 2009 marcaram protestos contra o capital e a guerra entre 28 de março e 4 de abril.

A comemoração dos 60 anos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), no dia 4 de abril, deve gerar muitos protestos mundo afora. E o dia 30 de março foi escolhido como data unificada de ações de apoio aos palestinos, contra a mais recente ofensiva bélica israelense na Faixa de Gaza.

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