Duas horas antes do início previsto, a fila de participantes para o ato com os cinco presidentes latino-americanos que vieram ao FSM já dava voltas no Centro de Convenções do Hangar. Promovido pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), Ibase e Instituto Paulo Freire, a atividade se transformou no principal acontecimento desta edição do Fórum, ao reunir, numa mesma mesa, os presidentes da Bolívia, Evo Morales; do Equador, Rafael Correa; do Paraguai, Fernando Lugo; da Venezuela, Hugo Chávez; e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. Na platéia, uma festa de mais de 12 mil pessoas, que aguardaram por horas o início do debate, sem esmorecer.
Antes de tomar o microfone para discutir o tema proposto – América Latina e o desafio da crise internacional – os cinco presidentes ouviram com atenção aos pleitos da sociedade civil, trazidos por três mulheres defensoras de um outro mundo possível: a sindicalista de Burkina Faso, Mamurata Cize; a indígena equatoriana Blanca Chancoso; e a feminista paraense Maria das Graças Costa. Juntas, elas cobraram dos governantes ações concretas, e não apenas discursos, para garantir os direitos trabalhistas; respeitar os povos indígenas e proteger os recursos naturais; e defender a igualdade e a autonomia das mulheres.
As respostas dos presidentes para a crise, no entanto, foram além. Centrados na defesa irrestrita da integração latino-americana e na afirmação do socialismo do século XXI como respostas às desigualdades geradas pelo sistema neoliberal, em uníssono Morales, Correa, Lugo, Chávez e Lula declararam: o novo mundo já começou e seus ventos sopram daqui, da América Latina.
”Nosso continente está vivendo uma época de mudança. Há alguns anos, os governos neoliberais não imaginariam que se reuniriam tantos companheiros como agora. Não queriam acreditar que um índio seria presidente da Bolívia e que alguém da teologia da libertação governaria o Paraguai”, disse Rafael Correa em referência aos colegas de mesa. “Nada disso teria sido possível sem a resistência e o despertar dos nossos povos. Agora estamos aqui, presidentes progressistas, de esquerda, comprometidos com as causas sociais e com esta América. Vivemos processos heróicos que estão dando frutos”, completou.
“Este continente foi laboratório onde o neoliberalismo testou de forma mais profunda suas riquezas, onde os povos foram arrasados nos anos 80 e de forma mais perversa nos anos 90. Mas assim como recebeu a maior dose de veneno neoliberal, foi neste o continente em que brotaram os movimentos sociais que começaram a mudar o planeta. E eles não pararão”, sentenciou Hugo Chávez, num dos discursos mais breves de toda a sua carreira com presidente da Venezuela: apenas 15 minutos, respeitando o tempo dado pela coordenação da atividade. “Outro mundo é possível, necessário e está nascendo na América Latina. Aqui está acontecendo a verdadeira revolução”, acrescentou.
Por trás da revolução comemorada por Chávez está um novo modelo de sistema econômico, político e social defendido por todos os presidentes no encontro desta quinta-feira em Belém: o socialismo do século XXI. Mais do que a contraposição ao paradigma dominante do capitalismo, esta mudança é encarada agora como urgente pelos países como forma de enfrentamento à crise global do neoliberalismo. Na avaliação dos cinco presidentes, esta mudança de sistema já começou há 50 anos no continente, com a revolução cubana de Fidel e Che Guevara e o impulso da revolução bolivariana na Venezuela, dez anos atrás.
“Ali temos início de um novo sistema, em contraposição com o paradigma dominante que converteu o egoísmo e o individualismo na maior virtude do ser humano. Em contraposição, nasce o socialismo do século XX, que fala em atuar em comunidade para resolver problemas comuns. Isso se expressa de diferentes formas, mas também via ação do Estado. O socialismo do século XXI fala de recuperar o estado”, disse Correa. “Acreditar que teria todas as respostas antes de saber as perguntas foi uma das razões dos fracassos do socialismo do século passado. Este novo tem que evoluir com a sociedade e dar respostas às demandas sem dogmas ou fórmulas mágicas. O novo socialismo também coloca a necessidade de mudanças ambientais, de uma nova visão de desenvolvimento que não se dá no materialismo e acumulação, mas se baseia no viver”, afirmou o presidente do Equador.
A hora da integração regional
Outro aspecto destacado nas falas para o enfrentamento da crise foi a aceleração dos processos de integração regional. Os exemplos da criação do chamado banco do sul e da petrosul, para gerenciar a exploração e comercialização do petróleo produzido na região e, assim, multiplicar ganhos e distribuir riquezas, devem ser consolidados com urgência .
”A América Latina deve construir uma posição firme no cenário internacional. E há ações imediatas para orientar esta reorganização da região. A primeira é construir uma consciência integradora, sem repetir velhos modelos. A segunda é fazer um inventário das riquezas econômicas e culturais da região”, sugeriu Fernando Lugo, presidente do Paraguai. Tocando num assunto delicado entre Brasil e Paraguai, Lugo declarou que há muito tempo os dois países não sentavam em uma mesa para discutir a questão hidrelétrica, fazendo referência ao conflito em torno da usina de Itaipú. Para o presidente do país vizinho, quando o Paraguai puder compartilhar deste empreendimento, se abrirão novas portas para o desenvolvimento da sua nação.
Divergências políticas a parte, ficou claro que, como nunca, há vontade dos países para a integração. E ela passa pela busca do intercâmbio comercial e também de políticas comuns de energia, saúde, infraestrutura de comunicação, entre outras. “Enfrentaríamos melhor a crise se já tivéssemos um banco do sul, uma moeda do sul. Falta só um passo para converter este grupo em organização de estados latino-americanos e resolver nossos problemas entre nós”, acrescentou Rafael Correa.
A partir do exemplo da integração regional, Evo Morales sugeriu em seu discurso a criação de uma campanha pela implantação de uma nova ordem econômica mundial, baseada na justiça e na complementaridade entre nações. Para Lula, a crise é uma oportunidade para discutir o mercado financeiro e as políticas de desenvolvimento e distribuição de renda.
“É imprescindível discutir uma nova ordem econômica e o controle do mercado financeiro. Vamos dizer isso na reunião do G20, em abril. Eles não podem seguir especulando como especulam”, criticou o presidente. “Vivi os momentos duros dos anos 80, da dívida externa, quando o FMI dava palpite na vida dos pobres e o Banco Mundial tinha solução para tudo, dizendo que tínhamos que fazer. Parecia que éramos incompetentes e eles, infalíveis. Deus escreve certo por linhas tortas: a crise é deles. A crise nasceu porque os anos 80 e 90 estabeleceram o Consenso de Washington. Venderam a lógica de que o Estado não prestava e o deus mercado faria a justiça social. O mercado quebrou por falta de controle e especulação. Agora espero que o FMI diga ao Obama e ao Sarkozy como eles tem que sair da crise que criaram”, disse Lula, provocando muitos risos e aplausos da platéia.
O presidente brasileiro aproveitou a ocasião para anunciar que o governo federal construirá 500 mil casas em 2009 e outras 500 mil em 2010 como forma de gerar empregos e tentar reaquecer a economia. Somente a Petrobrás deve investir 174 bilhões de dólares até 2013.
A inspiração do Fórum
Se dos novos governos da América Latina surge a alternativa do socialismo do século XXI e se a integração regional se mostra tão possível e próxima de se concretizar, houve uma última mensagem deixada pelos presidentes à cidadania mundial reunida em Belém: a de que os princípios e processos do Fórum Social Mundial não apenas inspiram seus governos como a resistência aqui semeada foi responsável pela própria chegada ao poder daqueles cinco homens de esquerda.
“As idéias do encontro não são apagadas depois que vamos embora. As mudanças respiram neste Fórum Social Mundial. Por isso, fiquem firmes neste rumo. Amarrem as mãos para não soltar a esperança. Sigamos, como disse Geraldo Vandré, caminhando e cantando”, encerrou Lugo poeticamente.
“Este Fórum Social Mundial é uma assembléia da humanidade. Todos os anos que acontece, é o evento político mais importante do mundo”, disse Chávez. “Aqui estão presidentes que surgiram do calvário travado pelos povos, que foram paridos pela luta. Sigam lutando porque seguiremos parindo mudanças na América Latina”, concluiu.
Lula deu um conselho aos presentes: guardem a fotografia deste dia. Ninguém saiu do Hangar de Belém com qualquer dúvida em relação a isso.