O capitalismo – e sua “versão moderna”, o neoliberalismo – sempre encontra formas de se adaptar a uma conjuntura dada para impor ali sua visão hegemônica, transformando a realidade de acordo com os interesses dos de cima. Com a educação não foi diferente. Afirmada como direito desde o início do século passado e tida como um verdadeiro instrumento de libertação e construção da igualdade, a educação, a partir dos anos 80, passou a ser tratada como serviço.
Retomar a conquista obtida com muita luta e mobilização popular passa, hoje, pela superação do atual sistema, via construção de alternativas contra-hegemônicas de projetos políticos. Foi esta uma das conclusões do debate sobre educação e pós-neoliberalismo realizado nesta quarta-feira (28), na Universidade Federal do Pará, no primeiro dia de atividades do Fórum Social Mundial 2009.
Na avaliação dos debatedores, nos anos 80, sobretudo na América Latina, diferentes governos passaram a colocar em prática uma série de reformas baseadas nos princípios estruturantes do modelo ora em implantação: eficiência e competitividade. Reduziram as verbas para a educação pública, flexibilizaram o trabalho dos docentes, implantaram avaliações via aplicação de provas padronizadas, centralizaram os processos de decisão acerca de políticas públicas e vincularam o repasse de recursos ao número de matrículas realizadas nas escolas.
“Isso só aumentou a desigualdade entre as instituições educativas, estimulando a competição entre elas e condicionando recursos ao total de estudantes. As escolas passaram então a inflar seus índices de matrícula, e hoje a maioria dos países no continente diz que tem índices de acesso à educação infantil maiores que 90%. Assim os governos dizem que trabalharam pela educação, porque colocaram as crianças nas escolas, sem falar, por exemplo, em como cresceram as taxas de evasão”, explica o colombiano Orlando Pulido, da Universidad Pedagógica Nacional e membro do Fórum Latino Americano de Políticas Educativas. “Na prática, o neoliberalismo aprofundou as deficiências. Privatizou, bancarizou e gerencializou a educação”, acredita.
Na Venezuela, por exemplo, o discurso das reformas teve início com a justificativa da necessidade de se aumentar a cobertura do sistema de ensino. De fato, o que ocorreu foi uma transferência da educação para o setor privado. No ensino superior, a presença das universidades privadas para de 30 para 51% do total de vagas oferecidas. E têm início processos excludentes de seleção para o ensino público.
“O processo de seleção foi mercantilizado. Na Universidad Simón Bolivar, os critérios de seleção passavam por uma descrição do local de moradia e do emprego dos pais, entre outros itens. E ali não havia, por exemplo, a opção “operário”. Os futuros estudantes só podiam ser filhos de professores, funcionários públicos ou profissionais liberais”, conta Luis Bonilla, do Centro Internacional Miranda, de Caracas.
“Ou seja, as políticas neoliberais foram usadas para gerar exclusão no sistema. As universidades públicas, que eram um bastião de luta, viram seus quadros de esquerda e sua intelectualidade se entregar às idéias capitalistas. Hoje, os alunos e docentes das universidades defendem o neoliberalismo contra as mudanças revolucionárias socialistas que queremos implantar na Venezuela. Sem dúvida, esta é uma tarefa pendente para a revolução bolivariana”, completa Bonilla.
Outro exemplo de política neoliberal implementada no continente são as avaliações por mérito dos docentes, que se inserem numa lógica de medição da qualidade a partir da perspectiva de gerenciamento da eficiência, e que transferem a responsabilidade do aprendizado apenas para o professor, como se fosse um trabalho individual e não coletivo. Na avaliação de Ingrid Sverdlick, membro da Campanha Latinoamericana pelo Direito à Educação, também presente no debate no FSM, o conceito de avaliação consolidado na pedagogia foi “roubado” e passou a ter um conteúdo econômico.
Que concepção de avaliação trabalhamos – fragmentada de plano e política de educação. É apenas ranqueadora, quantitativa. Tem que estar sustentada em um projeto de educação. O que pretendemos com este conteúdo? Ranquear não é avaliar. Falamos de sistemas de avaliação, só para punir o professor.
“Trata-se de uma avaliação apenas ranqueadora, quantitiva, fragmentada, não sustentada por um projeto de educação. Ranquear não é avaliar”, completa Maria da Graça Bollmann, Presidente da Associação de Educadores da América Latina e do Caribe. “A Organização Mundial do Comércio não faz outra coisa a não ser estabelecer diretrizes para as políticas de educação via Banco Maundial. A escola precisa formar cidadãos críticos, para que não sejam definidos e redefinidos pelo mercado”, conclui.
Alternativas contra-hegemônicas
Responder ao desafio de retomar o conceito de educação como direito passa por aproveitar brechas no sistema, como tirar o maior proveito possível de reformas em andamento ou construir alternativas locais de resistência à mercantilização do ensino. A prefeitura de Bogotá, na Colômbia é um exemplo. Diante do alinhamento total do governo federal de Álvaro Uribe com as políticas neoliberais, a oposição conquistou a prefeitura da capital do país e, com uma política alternativa, desenvolveu reformas integrais em âmbito municipal, envolvendo diversos setores do poder público para solucionar os desafios da educação.
“O fundamental, no entanto, para ampliar a capacidade de resistência, é construir projetos de alternativa política. O neoliberalismo está em crise, mas após isso surgirá uma alternativa dentro do próprio capitalismo. Afinal, um dos efeitos deste modelo foi ter desaparecido com os partidos e retirado dos movimentos sociais a capacidade de construir alternativas políticas. Temos que superar isso e garantir a capacidade de construir organizações políticas alternativas com condições de disputar a hegemonia”, afirma Orlando Pulido.
Numa conjuntura de transformações políticas nos governos da América Latina, é de se esperar que o caminho a trilhar seja menos turtuoso. Mas os especialistas do campo alertam: mesmo o “socialismo renovado” do século XXI tem encontrado dificuldades para superar a lógica imposta à educação nas duas últimas décadas.
“Na Argentina, o governo de Cristina Kirschner recolocou a política acima da economia, o que abre as portas para um debate sobre que modelo de país queremos. No entanto, não podemos ficar a espera dos governos. A contra-hegemonia temos que construir nós mesmos, a partir das escolas, dos professores e dos movimentos”, concluiu Ingrid Sverdlick.