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Na África, muitas mulheres são expulsas de casa quando contam ao marido que estão contaminadas com o vírus do HIV. A imensa maioria não se sente capaz de estabelecer um diálogo dentro de casa para que o casal utilize preservativos em suas relações. São as maiores vítimas de um processo de moralização da doença que prega a abstinência sexual como forma de prevenção. Também são elas as encarregadas de cuidar das pessoas doentes quando a Aids se manifesta. Num cenário de feminização da doença – não exclusivo do continente africano -, as estratégias empregadas não têm respondido à realidade das mulheres. “Ignoraram nossos direitos e então as mulheres gritaram, mas parece haver uma conspiração pelo silêncio”, afirma Beatrice Were, militante da causa do combate à Aids em Uganda.
É contra essa conspiração que há décadas vem lutando o movimento feminista africano. Nascido no seio dos processos de libertação dos países nas décadas de 60 e 70, o feminismo no continente sempre teve como bandeira tornar as mulheres visíveis. Nos últimos anos, avançaram da macro discussão de gênero e mergulharam também em debates sobre a construção de políticas nacionais; mudaram a estratégia de resistência e incluíram manifestações culturais como forma de protesto. Fortaleceram-se a ponto de conquistar a assinatura do Protocolo para Direitos das Mulheres na África, um importante mecanismo de proteção regional.
“A atuação das organizações de mulheres ajudou a mudar as sociedades africanas como um todo. Hoje, na nossa pauta, estão questões como participação popular, governança e democracia”, conta a queniana Muthoni Kanyeki, do Fórum Feminista Africano.
Essa característica não se restringe à região que hoje sedia a sétima edição do Fórum Social Mundial. A presença feminina neste FSM é marcante e talvez um de seus aspectos mais positivos. Em qualquer espaço de discussão que se entre, dos debates sobre meio-ambiente aos protestos contra os acordos de livre-comércio, elas despontam como lideranças do movimento altermundista. Como explica a peruana Gina Vargas, da Articulação Feminista Mercosul, do Peru, “todas as lutas são das mulheres; o feminismo representa uma nova perspectiva para a democracia”.
Por isso o objetivo das organizações deste campo tem sido lutar para construir um novo pacto social que transforme as estruturas e a vida cotidiana das pessoas. Elas têm priorizado o questionamento das relações de poder e reivindicado o reconhecimento das diversidades em todas suas manifestações.
“Não existem “temas de gênero” a serem discutidos. O que precisa existir é uma perspectiva feminista de todos os assuntos. Digo feminista e não feminina porque Condoleezza Rice [secretária de Estado dos Estados Unidos] é uma mulher e não acho que precisamos da perspectiva dela”, critica a indiana Kamla Bhasan, co-presidente da organização PeaceWomen Across the Globe. Durante a marcha de abertura do Fórum, realizada no último dia 20, sem demonstrar cansaço debaixo do sol forte de Nairobi, Kamla carregava uma faixa em que se lia a frase “O sonho Americano criou um pesadelo para muitos”.
Contra todas as formas de opressão
As articulações feministas no âmbito do sétimo FSM começaram antes mesmo da abertura oficial do encontro. Durante três dias, mulheres vindas dos cinco continentes, se reuniram para debater suas estratégias de ação para o próximo ano. Ratificadas ao longo das atividades do Fórum, elas terão como foco o combate à militarização e ao fundamentalismo, dois aspectos entendidos como centrais quando se fala em violência contra a mulher no mundo globalizado.
“É preciso envolver as mulheres no movimento contra a luta armada. Temos que entender que a militarização está diretamente relacionada à política desenvolvida pelos países e às conseqüências que elas trazem a nossas vidas”, explica Sunila Abeysekara, do Centro de Documentação em Direitos Humanos, do Sri Lanka. “As guerras lutadas em nome da democracia hoje estão entre aquilo que mais traz sofrimento às mulheres”, diz.
Outra bandeira histórica do movimento, que seguirá na pauta do próximo ano, é o enfrentamento a todos os tipos de fundamentalismo – econômico, político e religioso -, que tem ingerencia direta sobre o corpo e a vida das mulheres. Deles decorrem a crescente mercantilização do corpo e exploração sexual das mulheres e violações brutais de seus direitos sexuais e reprodutivos.
“Onde quer que estejam, há centenas de anos os fundamentalistas controlam a sexualidade das mulheres. As que tentam resistir são vítimas de processos, agressões, estupros e até morte a pedradas”, indigna-se a senegalesa Ayesha Imam, da Rede Internacional de Solidariedade das Mulheres que Vivem Sob as Leis Muçulmanas. “Fundamentalismo e militarização são formas de opressão que se alimentam, porque muitos fundamentalistas usam as armas para defender suas idéias”, explica.
Iniciativa nobre
Como forma de prevenir as causas da violência dando visibilidade à luta das mulheres pela paz, justiça e igualdade, em 2006 seis mulheres – das somente doze – que receberam o Prêmio Nobel decidiram se juntar e usar o prestígio da nomeação como ferramenta de transformação social. Criaram a Nobel Women’s Initiative, que trabalha com uma concepção de paz que não se restringe à ausência de conflito armado. Para as integrantes da iniciativa, paz é o comprometimento com a igualdade e a justiça; é um mundo democrático, livre da violência física, econômica, cultural, política, religiosa, sexual e ambiental e da constante ameaça dessas formas de violência contra a mulher.
“As mulheres têm trabalhado imensamente em silêncio para trazer paz para suas famílias e comunidades. Sentimos que não podíamos ficar em silêncio tambem. Não há mudança individual”, disse a americana Jody Willians, premiada em 1997 por sua campanha contra as minas terrestres, que veio a Nairobi para o Fórum.
“Nosso foco é nas mulheres porque isso pode ter um impacto em seus filhos e maridos”, completou Shirin Ebadi, que ganhou o Nobel em 2003 pelo trabalho desenvolvido na Associação de Apoio aos Direitos das Crianças no Irã. Hoje ela é uma das principais liderancas dentro do país a combater tanto as violações de direitos humanos cometidas pelo governo iraniano como a postura de ameaça de ataque norte-americana.
Um dos resultados do trabalho da Nobel Women’s Initiative foi uma reunião realizada em junho do ano passado, em Viena, Áustria, entre representantes da sociedade civil iraniana e norte-americana. A conclusão da reunião foi que guerra e paz são questões que envolvem toda a população de um país, e não somente seus governos, e que a sociedade civil desses dois países nao queria entrar em guerra. Em 2007, a primeira reunião oficial entre as seis nomeadas terá como tema a violência contra a mulher no Oriente Médio. Elas também estão com uma missão agendada a Darfur, no Sudão, palco de uma das maiores crises de violação de direitos humanos da atualidade.
“Há uma variedade enorme de formas pelas quais milhares de mulheres lutam diariamente pela paz. E a maioria delas não é reconhecida. Mas não devemos nos sentir incapazes. Mesmo que nossos governos não estejam agindo em relação a isso, cada um pode fazer um pouco”, reforça a queniana Wangari Maathai, que recebeu o Nobel em 2004 em função de sua luta pelo desenvolvimento sustentável. Sua meta, este ano, é plantar um milhão de árvores em todo o mundo. As primeiras já o foram aqui em Nairobi, na ultima terça (23), durante uma cerimônia no Fórum Social Mundial. Como disseram as feministas que vieram ao FSM, que destas árvores floresça este novo mundo tão desejado pelas mulheres