Diário de viagem a Nairobi

Jambo! Karibu ao VII Fórum Social Mundial no Quênia.

A chegada no solo africano…

No dia 18 de janeiro de 2007, dezenas de brasileiros embarcaram em uma aeronave rumo a Nairóbi – Quênia, no dia seguinte ao som de muitos aplausos a mesma aterrissa em solo africano, cidade de Johannesburg – África do Sul, marcando o início de uma viagem que ficará marcada para sempre em nossas vidas.

Carregávamos muitas expectativas e emoções, nos sentíamos como filhos que retornam à casa da mãe, até então, conhecida apenas por recordações históricas mantidas graças às lutas dos afros-descendentes desde a diáspora.
A recepção calorosa em Nairóbi tem início no aeroporto Jomo Kenyatta, o nome homenageia um dos lutadores mais populares e influentes na independência do Quênia, onde companheiros quenianos nos esperavam oferecendo abrigo em suas casas. Não tivemos problemas com informação: do taxista ao homem de negócio, do morador de rua ao empresário, todos muito solícitos demonstrando muito prazer em nos receber. Entre um sorriso e outro ouvíamos: “karibu”!

A troca de experiência entre lutas populares …

Soweto Organização Negra apresentou no VII Fórum Social Mundial, em Nairóbi, Quênia, um painel de comunicação com o tema: Experiências de educação popular na luta de combate ao racismo e todas as formas de discriminação no Brasil.
A atividade estava programada e aconteceu na manha de terça feira, dia 23 de janeiro as 8.30 h e contou com a participação 20 representantes de organizações de diversos países como Brasil, E.U.A, França, Índia, Quênia e Moçambique e Angola.
As educadoras da Soweto – Gevanilda Santos, Glauciana de Souza e Suelma Inês Alves de Deus – juntamente com e o educador parceiro do Projeto Quixote – Gildean Silva “Panikinho” Pereira – relataram suas experiências. Todos são educadores populares, de formação acadêmica no âmbito de graduação e mestrado, atuantes na cidade de São Paulo, que levaram para Nairóbi o debate sobre as experiências de educação popular e a luta anti-racista no Brasil a partir do diálogo com a metodologia freiriana, considerando quatro atividades:

1. Curso de formação em Biblioteca Comunitária para jovens moradores das periferias da cidade de São Paulo.

2. Oficinas de Memória e História: o processo do envelhecimento e o fortalecimento da identidade racial.

3. Curso de formação “Negros e Negras: resistência, identidades e opção pelo socialismo”.

4. Oficinas de Hip Hop como instrumento de educação popular das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

Após as apresentações dos expositores, os participantes fizeram perguntas e relataram experiências de suas organizações. O debate proporcionou momento de troca de experiências bem como reflexões de estratégias para a continuidade da luta. De um modo geral todos concordaram que a situação de pobreza e discriminação racial atinge a população negra não só da África como os países da diáspora. Especialmente no Quênia, a luta continua com a organização da comunidade e os recursos humanos e apoio financeiros da Igreja e Organizações Não governamentais.

A exploração e o preconceito de classe foi uma forte reclamação das lideranças de Mombassa , cidade litorânea do Quênia, que atuam pela proteção de criança e adolescentes órfãos. A situação de abandono das crianças e adolescentes quenianos é muito grave. A mais trágica é das crianças de Ruanda que em função da guerra civil estão num total abandono. Eles denunciam que a população negra de maior poder aquisitivo virou as costas para população pobre.

Esta observação fez com que a percepção dos negros e negras brasileiros, sobre a luta de classes na África se aguçasse, visto que lá não houve um processo de mestiçagem com o europeu, como aconteceu aqui no Brasil. Aqui o trabalhador vivência a opressão de classe e raça de forma combinada, lá não. A opressão de classe não se interpõe diante da opressão de raça como ocorre nas sociedades que sofreram intenso processo de embranquecimento a partir da valorização da mestiçagem e concentração de riqueza, como a sociedade brasileira, o que explica a desigualdade sócio-racial, principalmente para negros e indígenas.

No Quênia o trabalhador em geral recebe salário mínimo no valor mais ou menos de 30 dólares por mês, o que equivale à cerca de 65 reais ou 1400 schilling em moeda local.
A exploração da mão de obra africana é intensa.
Podemos dizer que a África real é mais moderna do que imaginávamos, porém muito mais pobres do supúnhamos.

Na atividade da Soweto, a barreira da língua foi superada com tradução voluntária de um companheiro brasileiro, residente em Belém, a quem desde já agradecemos a solidariedade. O sucesso da atividade nos faz reiterar o princípio numero um do fórum “ um outro mundo é possível”

Impressões de Nairóbi

Pensar em visitar um país africano, a partir do senso comum, nos leva a pensar na miséria, na pobreza e nos perigos que se irá correr, desde a violência humana até as adversidades da natureza.
Conhecer um país africano, em especial o Quênia e a cidade de Nairóbi, foi importante para desconstruir a imagem do senso comum que via de regra vem carregada de estereótipo ou preconceitos.

Importante para isso é conhecer o cotidiano do trabalhador do país visitado, e, diga-se de passagem, trabalhador é trabalhador em qualquer parte do mundo. Assim, decidimos passar dez dias no Quênia vivenciando o padrão de consumo determinado pelo valor da moeda nacional, o shilling, e não o padrão de consumo padronizado pelo mercado do dólar americano.

Ficamos hospedados na rede hoteleira do centro de Nairóbi que possui acomodações simples e acessíveis. A vida noturna, cheia de atrações tais como: bares, lanchonetes, restaurantes, cinema e músicas locais. Freqüentamos restaurantes e bares populares e alguns requintados. Um cardápio bem servido, copos e talheres esterilizados e com freqüência nos ofereciam uma bacia para lavar as mãos. Saboreamos uma deliciosa cozinha africana a base de carne de carneiro ou frango, tudo com muito molho de tomate apimentado, geralmente, acompanhado por arroz ou ugali (um purê de inhame) e o sapati, uma espécie de biju muito comum nas refeições populares. Enfim, a comida é saborosa e o preço acessível, porém uma coisa não estava bem, o costume local era servir cerveja “Taska”, uma marca da indústria local, quente, isto é na temperatura natural.

Como é que descobrimos estes lugares? Perguntando e pedindo sugestões e indicações aos trabalhadores do comércio e turismo. A população local foi bastante simpática, amigável e solidária a ponto de deixar seus afazeres para nos ajudar a localizar uma rua ou qualquer outra informação. Ao nos despedirmos aprendemos a dizer “asante sana’” (muito obrigado) e ouvíamos prontamente “hakuma matata” (tudo bem, sem problemas).

Assim desbravamos Nairóbi

A impressão que tivemos foi a de estar em uma cidade que em muitos aspectos lembra São Paulo. Nairóbi tem um centro urbano desenvolvido, com um paisagismo bem planejado, avenidas largas, shopping center, carros importados e transito congestionado, e tem uma periferia que a população denomina de “guetos”, área onde se concentram as lojas populares que expõem os produtos nas calçadas, as favelas, o terminal dos matatos (lotações ou microônibus privados) e onde se vêm muitas pessoas circulando.

Andar a noite na cidade foi tranqüilo para quem tem curiosidade, interesse e experiência na educação de meninos e meninas rua. O serviço de segurança é privatizado e preventivo, existem muitos guardas noturnos e seguranças particulares na frente de prédios e lojas. Eles dividem as marquises com a população em situação de rua.

A população de rua é grande. O hábito de pedir dinheiro existente cá também existe lá.

Na periferia, as favelas Dandora e Kibera chamaram atenção por serem muito grandes, possuírem lixões a céu aberto e casas precárias. No entanto, a comunidade possui um trabalho organizado muito forte. As costureiras, os artesãos e alguns pequenos bares e restaurantes, são comuns nestes locais. Mesmo sem a participação governamental, existem as organizações sociais que desenvolvem atividades com as crianças e os jovens na área da informática, cursos de direitos humanos, esporte (principalmente o futebol) e música.

Conhecer a realidade das favelas quenianas, como a de Kibera e Dandora, nos possibilitou ver lideranças engajadas, lutando pela transformação de uma realidade desumana. Crianças brincando em lixões, falta de água e saneamento básico, sala de aula precária e sem condições mínimas para acolher seus alunos, e o pior: a rede escolar é particular. Apesar de vivenciar uma realidade cruel, a população não perde a esperança e alegria de viver. Ao andarmos pelas vielas ouvíamos dos pequeninos: Como vai você? Qual o seu nome? E nos acompanhávamos até a sede de um projeto, de um pequeno comércio, de uma lojinha de artesanato, uma casinha de costura, um salão de cabeleireiro ou a um campo de futebol. E no trajeto nos ensinavam algumas palavras em inglês e aprendiam o português.

As favelas denunciam uma política precária de habitação que resulta em moradias de pau a pique, coberta com zinco, sem saneamento básico nem rede de água potável encanada. Um dos problemas denunciados por lideranças locais é que o governo negocia a terra com a iniciativa privada que por sua vez constrói as casas para a população pobre, mas, geralmente aluga as unidades populares para terceiros.

A privativatização do serviço público no Quênia nos pareceu ser uma política de governo. Um governo republicano que teve início em 1963 e a jovem república queniana ainda traz muito do autoritarismo das elites, a concentração a riqueza que se juntou aos interesses das potências neo-coloniais, dando as costas para os trabalhadores recém chegados das vilas rurais, a exemplo do Massai Mara. Uma comunidade rural e tradicional que sobrevive do artesanato e criação de gado.

O governo não atende as políticas sociais de saneamento básico, educação e transporte público. Faz vista grossa e privatiza os principais serviços públicos, a exemplo da distribuição industrial de água potável pela Coca-cola.

Nas conversas com a população local, sempre aparecia um e outro elogio aos jogadores de futebol brasileiro. Quando os quenianos percebiam que éramos brasileiros, exclamavam; Brasil, amigo! Futebol! Ronaldinho! E a conversa fluía… e diziam que o queniano não eram bom de bola, mas que os quenianos preferem se dedicar ao atletismo. E de fato eles andam muito a pé, andam muito rápido para fugir do calor e da precariedade dos transportes de massa.

Porque nos hospedamos no centro da cidade de Nairóbi, mais precisamente no Embassy Hotel, todos os dias utilizamos os Matatos (transporte local privado), muito semelhantes às lotações paulistanas.

Havia vários tipos de matatos, alguns modelos de jardineiras dos anos 50, de varias cores e grafitados, outros como as nossas conhecidas Vans, mas todos com a direção invertida em relação ao sentido que estamos acostumados aqui no Ocidente.O motorista senta no lado direito.
O matato percorria 10 Km transportando entre 10 e 12 pessoas numa velocidade de 80 Km por horas por ruas esburacadas como as nossas após dias de chuvas e inundações. Os matatos têm ponto fixo para embarque e desembarque. O terminal dos matatos, no bairro de Kasarani era num terreno não asfaltado e cercado por comércios populares, camelôs ao longo das ruas, mesquitas e uma igreja Universal do Reino de Deus. O ponto final do matato mais próximo do Ginásio de Esportes, local onde aconteceu o Fórum Social, ficava distante quinze minutos de caminhada a passos rápidos sob sol intenso.

Pra se ter uma idéia, o preço da passagem do matato que saia do centro de Nairóbi com destino
ao bairro de Kasarani, local do Fórum Social Mundial, foi de 20, 30 até 40 shilling. O equivalente a 80 centavos até 1 real e 20 centavos.

Esta opção de transporte mais acessível não foi apresentada pela logística da organização do Fórum Social Mundial do Quênia. A maioria dos participantes utilizou a rede de táxi, com uma grande frota, que negociava preços por corrida, já que não existe taxímetro. O primeiro preço inicial oferecido era no valor de 1200 shilling e depois da pechincha podia chegar ate 300 shilling dependendo do tipo de diálogo que se travava. Evidentemente, quanto maior a semelhança com o turista europeu, quanto mais apressada e indisposta a negociação, mais cara seria a corrida.

Aprendemos a negociar na Feira Maasai, que acontecia todas as terças-feiras. Muito artesanato bom, bonito e barato.Ao ser perguntado, cada artesão coloca um preço inicial em sua mercadoria e vai baixando o valor com a negociação. Diziam assim “ … Então me diz o quanto dá por esse utensílio?”… Logo você deveria colocar outro preço e depois da pechincha ouvíamos: “Ok, brazilian, friends”.

Andar a pé na cidade nos leva a pensar o quanto ainda é preciso oferecer melhores serviços e segurança para a população. Por exemplo, em muitas avenidas e ruas com um movimento intenso não há semáforos para carros e para pedestres. Atravessar as ruas torna-se uma aventura

A estrada para a cidade litorânea chamada Mombassa, o mais importante centro turístico do país, distante 8 horas do de Nairóbi, é estreita, pouco iluminada e com muitos buracos.

Não há um terminal rodoviário planejado. As empresas possuem seus pequenos escritórios, onde vendem as passagens, guardam os volumes e os passageiros ficam nas calçadas aguardando a partida dos ônibus. Os ônibus leitos aparentemente são confortáveis, mas os ônibus comuns estão bastante deteriorados.

Estas são impressões importantes do cotidiano do trabalhador queniano que, apesar da adversidade, acredita que um outro mundo é possível.

Ver, ouvir e sentir esta realidade nos ajuda a desconstruir impressão estereotipada que perde sentido e se perde no tempo diante da premência de reatarmos os laços de solidariedade com o continente africano, principalmente, nos juntarmos às mulheres africanas que lutam pela preservação do meio ambiente e contra a privatização da água, a todos os que repudiam o pagamento da divida externa dos países do sul, àqueles que exigem reparações aos países africanos e da diáspora, e todos que defendem a saúde pública e prevenção contra a Aids. Como nos disse um sul africano: a África é rica. Seu povo é pobre porque continuam expropriando as riquezas da África..

A imagem que ficou foi a atividades de encerramento do Fórum realizada no parque Uhuru, centro de Nairóbi. Discursos, música, dança, o colorido das camisetas com os slogans identificando a luta travada pelos participantes, muita roupa típica das diferentes culturas, muita máquina fotográfica para guardar aquele momento e depois relembrar. Deixamos o país cheias(os) de saudades do sorriso, da simpatia, da generosidade, dos gestos de companheirismo, da esperança que os africanos guardam de vencer e ser um povo livre das mazelas deixadas pelos colonizadores cantando ao som do RAP… a luta continua!

Diário de viagem a Nairobi, janeiro de 2007

Gevanilda Santos, Glauciana Souza e Suelma Inês Alves de Deus

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