A África somos nós em dobro

Foto: Henrique Parra

VII Fórum Social Mundial- Nairobi : reflexão e informes

“Rios, pontes e overdrives – impressionantes esculturas de lama
E a lama come mocambo e no mocambo tem molambo
E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia
O carro passou por cima e o molambo ficou lá
Molambo eu, molambo tu, molambo eu, molambo tu”

Chico Science

A incapacidade do capitalismo global, de caráter rentista, monopolista e militarista, de constituir instituições mundiais minimamente representativas fez do Fórum Social Mundial, espaço de vocalização de interesses amplos, até então não vistos, negados, reprimidos ou suprimidos. O FSM ganhou sentido histórico por colocar na cena mundial o fiasco da governabilidade da chamada “globalização”. Sua validade reside justamente na sua capacidade de compor um grande guarda-chuva para a contestação da ordem mundial.

O FSM foi por si só um espaço acusatório do Império do capital, do consumo e das armas e obteve instantânea legitimidade por contraponto, em um contexto de livre e desregrado comércio, de corrupção corporativa, de pisoteamento das instituições multilaterais e de imposição dos pactos do capital pela via militar. Mas o exercício de alteridade do mundo não pode depender apenas da incompetência hegemônica alheia. É preciso exercitar a tal possibilidade de outro mundo centralizando lutas e resistências em eixos estratégicos que detenham a destruição e capitalização da vida.

Se por um lado a crise da esquerda abriu caminho para a novidade do Fórum Social Mundial, por outro seus efeitos o atravessaram e continuam se superpondo a ele. Com o aprofundamento da crise da esquerda depois da ruína do socialismo real, uma parte significativa dela reciclou seus dotes e foi preencher discursivamente o vazio de legitimidade do capitalismo. O “social-liberalismo” não passa de uma variante conjuntural do neoliberalismo, com concessões de método em função de uma melhor eficácia do processo de monopolização. Os setores representados pelos herdeiros da social-democracia européia e também, mais recentemente, os da “nova esquerda” latino-americana, procuram fazer do Fórum um terreno pragmático de disputa por uma “globalização mais humana”. Já outra parcela da esquerda, vítima de um jogo de auto-definições, procura ansiosamente sedimentar-se em faixas e nichos ideológicos. Nesse esforço, tenta aprisionar espaços como o FSM em campos auto-referentes, como se o problema fosse apenas de expansão, e meios de expansão, da perspectiva anti-sistêmica considerada de antemão a mais autêntica.

Fora do campo organizativo da esquerda, mas dentro de sua tradição, movimentos de ação e de enfrentamento setoriais e territoriais não conseguem ir muito além dos recortes fragmentários em que estão inseridos. Mas há aqui um dinamismo promissor. Organizações de minorias, povos tradicionais, camponeses, campanhas em defesa de bens públicos como a água entre outras tem aproveitado o espaço do Fórum para não só fortalecer sua própria articulação e identidade mas também estendendo pontes para agregar e cruzar as agendas na mira da propriedade coletiva, de territórios comuns efetivamente liberados.

A centralidade política do FSM que precisamos não será fruto de uma radicalização extemporânea das direções dos agrupamentos, muito menos do diálogo e do encontro despretensioso das diversidades. O Fórum precisa ter capacidade de legitimar e disseminar alternativas vividas na contra-mão do capitalismo. De ser espaço de entendimento e leitura do que foi e está sendo excluído e negado, e ao mesmo tempo escopo do que está sendo resgatado e afirmado em outra direção. Por isso a provisória unidade que mantém o projeto FSM de pé deveria ser refeita a partir de uma nova conjunção de atores com enfoque territorial e setorial capazes de estabelecer acordos estratégicos a respeito de temas/processos/lugares com maior potencial contra-hegemônico. Nesses termos a realização das edições dos Fóruns(escolha do local, sua incidência regional, a prioridade dos enfoques) passaria a seguir uma lógica anti-capitalista com repercussões organizativas e operacionais, não somente verborrágicas.

O lugar do Fórum

A tentativa frustrada de aglutinar as discussões no quarto dia do Fórum revelou, não necessariamente imaturidade para o diálogo mas também falta de disposição de se criar pseudo transversalidades. A própria escolha da África como sede do Fórum unitário tinha que se traduzir em espelho político da política de terra arrasada do oligopólio do poder mundial. Um Fórum na África deveria ser inevitavelmente um contra-espelho, uma vitrine a expor nossa inconciliabilidade com um sistema capaz de criar e recriar infinitamente miséria e violência em tão grande escala.

Por isso, ao invés de negociarmos com Governos e fundos internacionais a viabilização do Fórum, deveríamos pensar a viabilidade dele para outro mundo, aquele para qual foi concebido. Um Fórum que ao invés de barrar a população dos sluns, que concentram mais da metade da população de Nairobi, atrás dos portões do Kasarani, cavasse lá nas favelas sua moradia política. As representações comunitárias das principais favelas do país não foram contatadas, as redes de economia popular, os grupos culturais nelas enraizados foram ignorados. Um exemplo é a organização Peoples Parliament, que representa ocupações urbanas na área central da cidade, e que organizou um evento paralelo ao Fórum, sem apoio de seu comitê local.

A super-suburbanização é a prova indisfarçável da falência do modelo econômico elitista e predatório aplicado na África e de resto em toda a periferia do capitalismo. Esse deveria ter sido o lugar de irradiação contestaria do VII Fórum: o gueto urbano, grande demais para confinar e desafiante o suficiente para nos manter rebelados juntos. Mas aos participantes do FSM foi orientado que evitassem passar nas proximidades dos guetos. Que se acautelassem, que tivessem medo do povo, que não circulassem fora dos caminhos previstos, táxi-hotel-estádio. Claro que a população local não poderia olhar e tratar diferentemente quem a estava encarando da mesma forma que seus antigos colonizadores. Esse estranhamento deliberado logo alimentou um infame jogo de extorsão patrocinado pelos prestadores de serviços com capacidade de replicar os padrões de atendimento considerados “civilizados”.

Dando exemplos muito prosaicos. Qualquer corrida nos populares Matatus( vans) que cruzam toda Nairobi custa 20 centavos de dólar, mas os “estrangeiros” do Fórum se sentiam mais “seguros” pagando em média 15 a 20 dólares por corrida de táxi. Da mesma forma os hotéis se sentiram a vontade para impor seus preços de safári de alta temporada enquanto poderia ter havido mais empenho de todos na negociação de hospedagens solidárias e coletivas em que de fato fosse propiciado intercâmbio, espaço de partilha e solidariedade. A busca de soluções locais, “informais”, em parcerias não mercantis, disponibilizaria mais recursos para que se garantisse a representatividade necessária das delegações e também para a crucial tarefa de comunicação/tradução.

Avanços nas articulações

· Em continuidade à luta contra a guerra imperialista definiu-se marcar um protesto mundial no dia 19 de março contra as invasões do Afeganistão e do Iraque e contra possíveis ataques aéreos ao Irã. Também foi dada prioridade ao combate ao G8 (“Vamos bloquear o G8”) que fará seu próxima reunião de cúpula em junho na Alemanha em junho.
· Os movimentos camponeses valendo-se de duas tradições comunitárias e de experiências históricas de coletivização da terra têm a sua disposição um patamar superior para desencadear lutas continentais e bi-continentais contra o modelo agroexportador e pela reforma agrária na América e Latina e África. Esse foi o compromisso firmado no Encontro da Via Campesina em Nairobi com forte presença de organizações camponesas africanas.

· Ongs e movimentos sociais que trabalham com o tema da dívida externa marcaram sua “Semana Global de Luta contra a Dívida” para os dias 15 a 21 de outubro em Washington. O aumento das desigualdades sociais e do índice de desnacionalização das economias dos países endividados foram diretamente vinculados às condicionalidades impostas pelas instituições financeiras. As dívidas são um instrumento de controle a serviço das grandes transnacionais e governos dos países da OCDE, o que ressalta sua ilegitimidade. O cancelamento dessas dívidas, especialmente nos países africanos, não pode portanto estar submetido a nenhuma exigência prévia.

· Contando com inédita articulação das campanhas e movimentos africanos em defesa da água pública, a assembléia das campanhas contra a privatização da água, reafirmou seu compromisso de exigir dos governos e das instituições internacionais que o acesso a água seja considerado direito humano fundamental e bem público inalienável. Foram anunciados preparativos para a criação de um espaço de governabilidade social da água em contraposição ao próximo Fórum Mundial da água em Istambul, em 2009. O próximo encontro do movimento será em Bruxelas entre 18 e 21 de março.

· A Rede Brasil e a organização ribeirinha Arirambas foram convidadas a expor a ameaça que paira sobre as populações do Rio Madeira, na Amazônia brasileira em uma oficina da rede Dívida ecológica. O projeto hidroviário e hidroelétrico do Rio Madeira(com financiamento prometido pelo BNDES e BID) foi denunciado junto com o projeto da Hidroelétrica Mepanda Nkuwa no Rio Zambeze(financiado pelo Banco chinês de exportações e importações), e com o Projeto múltiplo Jaime Roldos Aguilera na Península de Santa Elena no Equador( com financiamento majoritário do Banco do Brasil). Em comum o fato de todos esses projetos pensarem energia e transportes em função das necessidades de latifúndios monoexportadores e de grandes corporações com atividades eletrointensivas. O objetivo é agora intercambiar experiências de resistência e denunciar estratégias comuns dos investidores e financiadores.

· Participamos também do ciclo de atividades “Terra e Bens comuns”, projeto que procura mapear problemas comuns aos povos latino-americanos e africanos, aproximar os movimentos sociais de ambos continentes e contribuir para a definição de pautas comuns de luta que conduzam a um novo regionalismo. De nossa parte, a sugestão para o aprofundamento da discussão dos bens comuns, a realização de um seminário na Amazônia para a discussão da noção de território/territorialização com movimentos ribeirinhos, MAB, MST e povos indígenas.

África de volta

Passamos os últimos quatro dias em Nairobi, em reuniões, oficinas na Associação cultural Zingaro percusions situado na segunda maior favela de Nairobi, Mathare. O grupo se dedica ao resgate das raízes ancestrais africanas através da percussão, dança e canto, e se espelha na histórica resistência anti-colonialialista maumau. O projeto que juntos nos prontificamos a construir pretende intercambiar tradições e bens culturais amazônicos(ribeirinhos, indígenas e quilombolas) e africanos(kikuyos do Quênia a princípio). Voltamos cheios de exemplos e lições de luta e de dignidade em meio à máxima adversidade. A África somos nós em dobro, o melhor de nós todos. Não à toa o capitalismo global fez dela lugar prioritário de superexploração e genocídio. Não à toa será mais do que nunca lugar prioritário de resistência e de luta por um mundo livre do capital.

Luis Fernando Novoa Garzon

ATTAC/REDE BRASIL/REBRIP

Prof. do Departamento de Sociologia e Filosofia da UNIR

l.novoa@uol.com.br

One thought on “A África somos nós em dobro

  1. A África somos nós em dobro
    Caro Prof.Luis Fernando Novoa Garzon,
    Li a sua materia, porque a Africa e outras comunidades na mesma sitiação aqui no Brasil são motivos de minha simpatia e preocupação também. Abordar assuntos que estão distanciados da realidade cotidiana da sociedade classe média, meio média e menos ainda, é de natureza complexa e, quando nos deparamos com as abissais diferenças culturais entre nós ( o Prf.incluido ) com o cotidiano de comunidades africanas que vivem em outro “espaço tempo” , e apesar de serem seres humanos tais como nós e saber-mos de que eles precisam exatamente as mesmas coisas que nós outros, a ‘modernidade’ não passou por lá, as grandes cidades africanas tem problemas que só o “bendito capital” pode ajudar a solucionar(infra estrutura,saneamento básico,saúde, educação e por ai se vai). As comunidades rurais vivem em costumes que os modernos tem dificuldade de assimilar e quando tentam ajudar o resultado é desastroso, existe farto material disponível nos organismos internacionais onde se vê o que acontece. (ONU) etc…
    Caro Luis, não quero me estender, e até o faria porque gosto de um bom papo só lhe pediria para fazer uma reflexão por menor que seja, “sem dinheiro não se pode ajudar nem Africa nem Brasil” porém, como uma verdade matemática, voce sabe que o capital sempre está expandindo e com isso quero dizer: vai buscar mercado justo ou injusto , bom ou cruel,
    quer seja na Africa ou em outro lugar, não é no anti-capitalismo que residem as soluções e sim na indole humana, é esta que teremos de desenvolver e aperfeiçoar para que povos ‘adiantados e capitalizados’ não explorem os ‘povos atrazados e sem capital’ nehum.
    J.V.B.

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