Viver é melhor que sonhar

Este ano foi marcado por uma convivência paradoxal com a solidão, através da participação de uma multidão virtual composta de corpos isolados.

As multidões alcançaram a história da humanidade, as esferas de Marte e chegaram em remotos cantos do planeta Terra em sua infinita potencialidade virtual. Mas as multidões de corpos não circularam além das paredes das residências, ou poucos quarteirões da vizinhança em um número extremamente reduzido de encontros…

Pudemos conhecer e contracenar, literalmente, com aspectos nunca pensados de nossas existências: linguagens que buscam ser acessíveis, enfrentando a misoginia ou racismo semânticos onde muitas vezes são sitiadas; conhecimentos de partes distantes e remotas do planeta numa interação cultural com pessoas separados por enormes distâncias; aulas e cursos que não imaginamos ter acesso; estranhas intimidades que as câmeras supõe existir entre as pessoas que estão se vendo, próximas ou distantes, celebridades ou cotidianas…

Todas parecendo familiarmente mais ou menos iguais: bidimensionais, mas com simulações de realidade e presença.

Particularmente na cultura e, mais ainda, nas artes, o ano transbordou na disponibilização virtual de museus, galerias, espaços de shows ou concertos e as LIVES. Nunca fomos tão cultos e vimos tantas obras assim por tantos meios!

A arte e a cultura quase se tornaram bens de primeira necessidade, assumindo e compartilhando nossa família com filmes, séries, novelas, programas e músicas que tornavam o isolamento dos corpos parte de uma ficção de humanidade.

ESTÉTICA E IDEOLOGIA , esta coluna que você está lendo no Blog Ciranda, completa 26 semanas de escrita sob isolamento social, abordando aspectos que ligam a arte, a estética e o belo às ideologias, políticas e amarras que normalizam a produção e distribuição da arte, transformando algumas em mercadorias altamente lucrativas, enquanto outras sofrem um sistemático apagamento.

Nos transportamos para regiões e temporalidades remotas da história das artes: macacos pintando uma arte que se passou por sofisticada vanguarda, que chocou o mundo ao expor um mictório, revoltou pela perversidade contra animais, arte que denuncia o racismo e a misoginia, que recostura a história, que pode condenar os monumentos colonialistas e discriminatórios, que se torna massa falida, lava dinheiro, feita de balas, de terços e pênis, vaginas, tatuagens, maquetes que recriam a vida, sons que figuram, sacos ensanguentados de torturados durante a ditadura militar no Brasil, revolucionários avançando na construção de uma perspectiva, enquanto bota fogo em tudo e se descreve, reescreve e renasce como arte em cada leilão de algum criminoso que juntou dinheiro colecionando obras ou em cada “fetiche” denunciado e desprezado por algum crítico muito sério, que pensou um dia definir ou regular a beleza.

Mas éramos uma multidão de isolados!

Era só olhar e ver, ou perceber quando, durante as tempestades, algum raio derrubava a energia e sentíamos, de fato, um momento de corpo presente e em contato direto com sua solidão.

Todo o remoto entrava pela janela: a misoginia que nos assaltava, o racismo que esbarrava em nossas vidas cotidianamente, a política como máquina de morte e sobrevivência dos mais fortes e toda a angústia de estar confinado em casa, quando queríamos estar queimando todos os carros de todas as periferias do mundo.

Entravam cheiros, sons e imagens, imaginações de coisas e coisas que nem imaginaríamos, como saber que sempre, naquele mesmo horário, alguém choraria, sofrendo e oprimida… Nunca imaginaríamos que isso fosse descoberto paradoxalmente ao nos isolarmos. Como se fora necessário estar isolado para conseguir um momento de percepção de alteridade. Uma espécie de sarcasmo com o qual convivemos, mas que pode nos insensibilizar.

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[Andorinha: foto de Lira Ferrer Ferreira]

Um filhotinho de andorinha entrou pela janela e Frida, a cachorrinha, viu e nos avisou.

Sobressaía ali uma fragilidade tão frágil que impunha uma posição inesperada de um poder absoluto sobre a vida e a morte. Bastava um pequeno aperto, uma desatenção…

As andorinhas, entretanto, são o vento azul que sopra como metáfora e provoca um redemoinho todas as manhãs diante das janelas.

Aquela ali era a suma de tudo o que a janela trazia e nos colocava diante da decisão de que lado nos posicionarmos diante da vida!…

Pudemos alimentar, cuidar e, finalmente, encaminhar para o serviço que acolhe animais selvagens, o Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAS), no Parque Anhanguera, que nos permitiu a viagem mais longa, até Perus, desde o início de nosso isolamento. Facilmente conseguimos um carro emprestado, nos fortalecemos para romper o isolamento e enfrentar as consequências de uma escolha de lado.

— Sim, disse a agente da Prefeitura, é mesmo uma andorinha. Obrigada pelo acolhimento!

Lá conhecemos um urubu, que um outro agente acolhia. Ele havia se apegado aos humanos cuidadores e além de ficar pedindo carinho, se recusava a retornar ao seu habitat.

— Na Bienal de 2010 um artista, Nuno Ramos, expôs urubus e teve muito protesto, comentei.

— Sim, respondeu o rapaz que conduzia a enorme ave. Fui eu que fiz o laudo contrário!

Diante da misoginia, do racismo e da angústia que, já citados, entravam pela mesma janela, de uma forma metafórica pudemos salvar toda a humanidade naquele momento ao optar pelo acolhimento e pela defesa da vida. Como se um pacote completo envolvesse a opção pela sobrevivência e acolhimento e o ser que nos forjamos sendo cotidianamente.

Ora, mas que bobagem, quem vive de metáforas?

Não sei dizer se vivemos de metáforas, mas certamente com elas: nos sentimos próximos uns dos outros, quiçá como metáfora da falta que seus corpos nos fazem.
As metáforas, tanto quanto as opções, nos dão certeza de que continuamos vivos.

Viver sob pandemia, ou simplesmente viver, como já disse o poeta, é muito melhor que sonhar.

IMAGENS:
ABERTURA: CAPAS-MONTAGENS das matérias publicadas no Arte e Ideologia no Blog Ciranda.

ANDORINHA: foto de LIRA FERRER FERREIRA, em dezembro de 2020.

REFERÊNCIAS:
CEMACAS – Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres, no Parque Anhanguera e Serviço Veterinário.

“VIVER É MELHOR QUE SONHAR”. Verso da canção “COMO NOSSOS PAIS” (1976). BELCHIOR (Antônio Carlos Gomes Moreira Belchior Fontenelle Fernandes, 1946-2017).

BANDEIRA BRANCA (2010). NUNO RAMOS (1960). Urubus mantidos vivos em cativeiro durante exposição com caixas acústicas reproduzindo músicas brasileiras (“Bandeira branca”, “Carcará” e “Acalanto). Matéria disponível no Blog Ciranda

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