Um povo sem estado
No final da I Guerra Mundial, o Império Turco Otomano, que estava no lado derrotado, foi retalhado pelos vencedores, entre os quais o imperialismo inglês e o francês, dando origem ao atual mapa do Oriente Médio. As regiões que hoje conhecemos como Iraque, Síria, Jordânia, Líbano, Palestina (depois invadida pelo sionismo para dar origem a Israel) foram divididas entre as potências vencedoras como parte do butim de guerra. Mas ao traçar os mapas dos territórios que se transformariam nos atuais países, os imperialistas “esqueceram” de criar o Curdistão.
Como resultado dessa divisão arbitrária, os curdos permanecem até hoje como o maior povo sem estado no mundo. A população curda de cerca de 40 milhões de pessoas se espalha por um território que está recortado pelas fronteiras de quatro países: Turquia, Síria, Iraque e Irã. E nesses quatro países são igualmente oprimidos. A maior organização do povo curdo, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK na sigla em idioma local), baseado na Turquia, é considerado como organização terrorista pelo governo turco e seus aliados, os Estados Unidos, e reprimido como tal. Quando governava o Iraque, Saddam Hussein chegou a usar bombardeios de armas químicas contra o povo curdo para conter sua luta por autonomia. No Irã, os curdos são oprimidos pela ditadura dos aiatolás, e na Síria pela de Bashar Al Assad. Foi passando por essas dificuldades que a saga do povo curdo chegou ao século XXI.
Da Primavera Árabe ao Estado Islâmico
Quando a Primavera Árabe despertou as esperanças dos povos de toda a região de se libertar dos seus odiados governantes, a Síria também se levantou contra a ditadura de Assad. Mas a resposta violenta do ditador transformou o levantamento popular numa sangrenta guerra civil. Parte das forças que inicialmente receberam o apoio do imperialismo estadunidense contra Assad (e que reuniam radicais islâmicos de vários países da região) se transformaram recentemente em Estado Islâmico do Iraque e Oriente (ISIS na sigla em inglês, ou Daesh em árabe.). O Estado Islâmico – EI – acabou tomando o controle de toda uma vasta região que se estende entre o Iraque e a Síria, apropriando-se da riqueza petrolífera e das armas deixadas pelos Estados Unidos.
O EI se dedica a estabelecer um califado, ou seja, um regime idêntico ao dos sucessores imediatos do profeta Maomé, no século VII, por meio de uma campanha sanguinária contra os povos da região. Essa campanha se opõe também às demais denominações da religião muçulmana. Nunca é demais lembrar que o islamismo não é homogêneo, e se encontra dividido entre sunitas e xiitas, com várias seitas e subdivisões (da mesma forma que o cristianismo está dividido entre os ortodoxos, católicos e protestantes, que por sua vez também se subdividem, etc.).
É importante destacar também que a crise de alternativas faz com que muitos jovens do Oriente Médio vejam o radicalismo islâmico como um caminho para libertar o povo árabe dos seus governantes traidores, as dinastias corruptas e autoritárias que parasitam a região, que entregam a riqueza do petróleo aos infiéis ocidentais e permitem a profanação dos lugares sagrados por tropas estrangeiras. Para quem arde de ódio contra a miséria do povo, a corrupção dos governantes e a arrogância do Ocidente, o radicalismo islâmico parece ser a única opção capaz de preencher a vida com algum sentido.
Na sua luta pelo califado, o EI está perpetrando todo o tipo de atrocidade, aplicando a limpeza étnica contra os curdos, massacrando muçulmanos de outras seitas e decapitando jornalistas e agentes ocidentais. Os Estados Unidos não puderam ignorar as execuções de cidadãos estadunidenses e britânicos e anunciaram uma campanha de bombardeios contra o EI, bem como a volta das operações em terra no Iraque. Com isso, repete-se o padrão das outras duas levas do radicalismo islâmico, inicialmente armado pelos Estados Unidos contra seus inimigos, e que depois se transforma em pretexto para que invadam os países da região (as duas primeiras levas foram o Talibã e a Al Qaeda, surgidos no Afeganistão). Os Estados Unidos inventam a doença, o terrorismo islâmico, para vender a cura, as suas invasões militares.
A revolução de Rojava
Ao preparar mais uma invasão no Oriente Médio para deter o EI, o imperialismo estadunidense se depara com uma situação inusitada, pois o EI está enfrentado com o ditador Assad, que até ontem mesmo era inimigo dos próprios Estados Unidos, e também com a resistência curda na Síria, duas forças que por sua vez estão também opostas entre si. Os curdos da Síria aproveitaram o momento de fraqueza da ditadura de Assad e estabeleceram uma zona liberada no nordeste do país, na região chamada de Rojava em seu idioma. O território de Rojava enfrenta o triplo cerco do governo Sírio de Assad no oeste, da Turquia ao norte (que quer a todo custo impedir que o seu exemplo se espalhe para os curdos do seu território) e do Estado Islâmico no leste.
O mais extraordinário da resistência curda é que não se trata apenas de uma luta por independência nacional e autodeterminação do povo curdo, mas também de uma revolução política. O território de Rojava está dividido em cantões, que são administrados por assembleias populares. O exemplo mais próximo com que se possa comparar o processo em andamento em Rojava é o dos zapatistas mexicanos, com sua micro revolução em escala local. A ideologia dos revolucionários curdos não é o marxismo, mas uma variante pós-moderna de anarco-socialismo.
O braço armado da revolução curda é o YPG, sigla em curdo para Unidades de Proteção do Povo. A concepção organizativa do YPG é bastante avançada, pois os comandantes são eleitos pela base dos soldados. Além disso, a revolução de Rojava não é sectária nem exclusivista, uma novidade bastante interessante na região. Apesar de ter sua origem na luta por autodeterminação dos curdos, o YPG também aceita integrantes de outras etnias e religiões, como árabes que faziam oposição a Assad, cristãos siríacos, e até militantes marxistas, etc.
Mas a novidade mais radical é o fato de que o YPG também aceita mulheres. Uma das suas brigadas recebeu o nome de YPJ em curdo, que significa Unidades de Proteção das Mulheres. Essa característica da resistência curda por si só já a torna um elemento de avanço extraordinário no Oriente Médio, pois as sociedade da região, em sua esmagadora maioria, mesmo nas suas versões moderadas do islamismo, relegam as mulheres a lugares secundários. Em vários países, as mulheres não podem trabalhar fora, dirigir, cursar universidade, etc. Muito menos empunhar armas! Para os fundamentalistas de todos os matizes, e do EI em especial, isso é o cúmulo do sacrilégio!
As combatentes do YPJ lutam de igual para igual com os homens, encarando as mesmas tarefas militares que os combatentes do sexo masculino, participando da linha de frente dos combates. Não estão subordinadas nem inferiorizadas em relação aos homens. As mulheres participam também do comando geral das operações. Quando capturadas, as combatentes do YPJ explodem bombas que carregam consigo, para não serem violentadas ou torturadas, matando os inimigos que estiverem próximos. A sua bravura já se tornou lendária, de modo que são hoje o oponente mais temido pelo EI.
A batalha por Kobanê
No momento, a cidade de Kobanê, a mais importante de Rojava, enfrenta há três meses um cerco pesado do EI. Os fundamentalistas estão determinados a exterminar a resistência curda e abrir caminho para o interior da Síria. Curiosamente, Síria, Turquia e Estados Unidos, que lançam pronunciamentos cheios de indignação contra a barbárie do EI, silenciam diante do cerco de Kobanê. A Turquia mantém fechada a fronteira com a Síria, impedindo que chegue ajuda ao YPG/YPJ. Os Estados Unidos, sempre prontos a intervir quando seus interesses diretos estão ameaçados, deixam Kobanê à mercê de um inimigo mais numeroso e bem armado. Realizaram bombardeios na região dominada pelo EI no Iraque, para onde estão reenviando tropas (a retirada das tropas do Iraque foi uma das promessas de campanha de Obama), mas não realizam nenhuma operação na Síria.
Não é à toa que os Estados Unidos e as demais potências defensoras da “democracia” não intervém contra o EI na Síria. Querem enfraquecer ao máximo a resistência revolucionária de Rojava. A derrota dos curdos de Rojava nas mãos do EI apagaria da face da terra a experiência política mais avançada no Oriente Médio em muitas décadas. O exemplo de Rojava poderia contagiar positivamente outros povos da região, o que não interessa nem ao imperialismo nem aos governos títeres dos países árabes.
Os curdos de Rojava só podem contar com suas próprias e limitadas forças, e com a pouca solidariedade internacional que lhe tem chegado. A batalha por Kobanê é decisiva para o futuro do Oriente Médio. Na luta entre o EI e o YPG/YPJ estão defrontadas não apenas duas etnias ou religiões, mas duas alternativas políticas. De um lado, a barbárie fundamentalista do EI. De outro, uma alternativa democrática, pluralista, laica, de esquerda e feminista. Não pode haver dúvida sobre de que lado os revolucionários devem se perfilar!
Contra o Estado Islâmico e todas as formas de fundamentalismo e patriarcalismo!
Contra a intervenção imperialista!
Contra os governos burgueses do Oriente Médio!
Em defesa da resistência curda!
Pelo direito à autodeterminação dos povos!
Pela emancipação feminina!
Pela vitória das guerrilheiras de Rojava!
17 de janeiro de 2015 - 13:10