São dez para as sete da tarde. Pelas janelas do Gigantinho, ginásio anexo ao estádio Beira-Rio, o sol investe suas últimas luzes contra a multidão. Calor. Suor.
– Maestro Galeano está preso no trânsito, avisa, ao microfone, o organizador. (vaias).
Calor. Suor. Cinco minutos antes, uma bandeira feita de bandeiras de variadas organizações passára de mão em mão, por sobre a cabeça dos homens e mulheres que se aglomeram na arquibancada do ginásio. A alegria é um imperativo no Fórum Social Mundial.
Eduardo Galeano vem para falar em conferência sobre paz e valores. Esperam-lhe cerca de 20 mil pessoas. Querem ouvi-lo, compartilhar de sua inteligência. Calor. Suor. Antes, querem agradecê-lo, por ter lhes mostrado que o pensamento não é único, nem nunca será.
No alto-faltante, tocam os primeiros acordes de Uma Brasileira, dos Paralamas do Sucesso. A música termina. O programador emenda Luiz Inácio (300 Picaretas). A multidão canta o rap de Herbert Vianna e ensaia o grito que é marca registrada do presidente da República Federativa do Brasil: “Olê, olê, olá, Lu-lá, Lu-lá”. O coro aumenta. 300 Picaretas toca outra vez. Mal sabiam o que lhes esperava.
Não há espaço para viv’alma no Gigantinho. O Ginásio do Colorado é pequeno para Galeano. Calor. Suor. No rádio, segue a voz de Herbert Vianna, tema dele e do ministro Gilberto Gil: “Ó, mundo tão desigual/Tudo tão desigual/ou…ou…ou…” Clima de clássico futebolístico. Bem ao gosto do escritor uruguaio. Gritaria, dança, rebolado. Calor de esmorecer. Eduardo Galeano é apaixonado pelo futebol brasileiro, pela ginga, pelo carnaval do Rio de Janeiro. É um homem de gosto popular.
Sete horas. Em ponto. O maestro entra no palco. Acena, sob chuva de palmas. No espaço reservado à imprensa, aglomeram-se fotógrafos e jornalistas à caça de um momento único. Acompanham-no o teólogo Leonardo Boff – também muito aplaudido -, o sociólogo Jean Ziegler e a indiana Radha Kumar. Bandeiras do Uruguai são deflagradas. A mestre de cerimônia comenta:
– Estas personalidades que aqui estão reúnem mais público que uma banda de rock. Mas, diferentemente dos astros da música pop, precisam de silêncio para serem ouvidas. (aplausos efusivos. vaias. tudo ao mesmo tempo).
Galeano dá início à sua fala. Calor. Suor. Diz acreditar que as manifestações anti-guerra provam que um outro mundo é possível. Cita John Reed, o autor de Os Dez Dias que Abalaram o Mundo – “As guerras crucificam a verdade”. Reed morreu em busca da verdade. Galeano segue em sua cruzada. Ambos, unidos pela palavra profunda. Desveladora. A palavra, roubada dos homens pelos amos do mundo. Galeano nos devolve:
– Onde lê-se cruzada do bem contra o mal, entenda-se petróleo, petróleo, petróleo… (aplausos)
Prossegue com a lista da barbaridade. Enumeram-se frases inesquecíveis. 1 – “O povo vota, os banqueiros vetam”. 2 – “Cinco países tomam decisão no FMI. No Banco Mundial, um pouco mais democrático, sete decidem”. (risos) 3 – “Na Organização Mundial do Comércio todos os países têm direito ao voto. Mas nunca votaram” (risos) Galeano é irônico, mordaz, um tanto arrogante. Senhor do que pensa e diz.
Sobre o presidente brasileiro, vocifera:
– A eleição de Lula vai muito além das fronteiras deste país.
A multidão se inflama: retoma o “Olê, olê, olá, Lu-lá, Lu-lá”. O coro cresce. Galeano junta-se a ele. Do microfone, rege o público, que aos poucos se acalma.
– Porque a vitória de Lula é a vitória de um trabalhador sindicalista que que irá ajudar a distribuir as vitaminas contra a peste da desesperança. (ovação) É o ápice.
A noite ainda reservaria bons momentos. Como quando Galeano sugeriu uma agenda comum para Davos e Porto Alegre, contra o terrorismo, que ajudaria a distribuir “cartazes de WANTED para os mercadores de armas que necessiam da guerra como os fabricantes de agasalhos necessitam do frio.” Ou quando disse ser o petróleo um senhor idiossincrático, “com mania de derrubar governos, promover a guerra, poluir o ar e manchar as águas”. Mas já era o bastante. O Gigantinho já estava rendido. Pela fala de Galeano. Pelo calor. Pelo Suor.