Em 2019, quando o plano de Trump para Cuba foi radicalizado, com a aplicação do capítulo III da Ley Helms-Burton, o governo da ilha alertou que seria preciso reservar todo combustível que pudesse porque os tempos seriam duros. Estava clara a estratégia dos EUA de asfixiar ainda mais a economia cubana pela internacionalização das sanções – sancionando quem negociasse com Cuba – e pela energia. Faltava a ajuda da pandemia, que nem Trump poderia planejar.
A pequena ilha de apenas 110 mil quilômetros quadrados e 11 milhões de habitantes mantém seu sistema eletroenergético funcionando com uma geração térmica baseada em petróleo local e outra geração distribuída, que socorre a população nos momentos de pico, com diferentes combustíveis.
Mas em 2019, em cinco pacotes de medidas, Trump sancionou 27 empresas e 54 navios vinculados ao transporte de combustível para a ilha. E nada mais de matéria prima e suprimentos poderia entrar na ilha para o setor energético, incluindo manutenção das termoelétricas.
Na última semana, após um ano e meio lidando para evitar os temidos apagões, estes aconteceram, fruto das avarias nas termoelétricas Antonio Guiteras e os últimos concertos na termoelétrica Felton I, avariada em 2016 e desde então sendo reparada com pessoal exclusivamente cubano e assistência técnica à distância.
A pandemia chegou como um castigo adicional pelo aumento enorme de demanda energética e a necessidade de priorizar hospitais e serviços de saúde. Todos os olhos voltaram-se para o desafio de Cuba, orgulhosa de sua medicina, de investir na capacidade de desenvolver vacinas próprias. Apesar da alta eficácia e aprovação da vacina Abdalla, entre outras em fases avançadas de teste, como as Soberanas I, II e III, o bloqueio não foi flexibilizado para permitir a chegada da matéria prima necessária em qualquer país para a fabricação dos medicamentos e faltam até seringas para aplicar as vacinas produzidas.
“Não há nada mais desumano em uma pandemia do que bloquear economicamente um país.”, disse o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, durante uma videoconferência que realizava no Museo del Bicentenario de Casa de Gobierno, ao saber dos protestos que explodiram em Cuba.
Mas não foram apenas estes – se não fossem poucos – os motivos para a tomada das ruas cubanas que animou a mídia internacional a assistir os protestos desesperados contra ou a favor do governo cubano. O drama econômico de Cuba também foi agravado após a tentativa de equilibrar as finanças pela reforma monetária promovida em 2020 pelo governo no pacote batizado de Tarea Ordenamiento que eliminou o chamado dólar cubano (CUC) e unificou a moeda nacional no peso cubano. Para atenuar a fase de transição, foi criada uma moeda eletrônica temporária, a MLC (Moeda Livremente Conversível) para uso exclusivo em forma de cartão, no valor de 25 pesos cubanos e os salários foram multiplicados por cinco. Porém, estes atenuantes não deram conta de amenizar a outra parte do pacote: o corte de subsídios a produtos básicos e aumento das tarifas de serviços. Com a escassez de alimentos, gás e combustível, o mercado paralelo encontrou espaço para crescer, inflacionar e desequilibrar a economia ainda mais.
Outro esforço cubano em melhorar a atividade econômica foi mais recente e arriscado. O controle das mortes por covid estava sendo bem avaliado até um mês atrás. Mas o efeito paralelo da pandemia foi afastar os turistas, fonte importante de receita para a ilha, ao lado de remessas de cubanos no Exterior, que também diminuíram. Cuba decidiu flexibilizar o isolamento social. O resultado foi a elevação do número de infecções e o registro de mortes que estão assustando a população.
Os protestos do final de semana mostram que a juventude cubana está sofrendo com a crise econômica e sanitária, somada ao desejo dessa nova geração, mais midiatizada, de incidir mais diretamente na política. Mas também demonstram que os sentimentos da população continuam em disputa entre a revolução e o vizinho do norte, guardião dos contra revolucionários cubanos, um gigante humilhado pela resistência cubana ao seu cerco implacável há mais de sessenta anos.
É muito claro que existe um modo de ajudar o povo da ilha a resolver seus próprios problemas, e que começa pela suspensão das sanções, como apontou o presidente do Mexico, Lopes Obrador.
Porém, não é de ajuda na crise que se trata, no momento em que os EUA tentam cercar-se de garantias contra influências externas na região. Por isso também o mar do Caribe está sendo observado de longe. O portal russo Avia.pro noticiou que os EUA preparam o envio de navios de guerra para a costa cubana, para uma tomada contundente do poder da ilha. O receio seria a chegada de assistência na crise e apoio militar russo à revolução ameaçada por protestos que estariam sendo na verdade insuflados além de suas fronteiras. Ou, no mínimo, aproveitados para a tomada da ilha no laço.
Olhando para o continente latino-americano e caribenho dos últimos anos, há sintomas que irmanam Cuba a processos que já são analisados pela similaridade com as novas guerras não convencionais. Elas exploram sentimentos fraticidas no interior dos países e estimulam simpatia externa à ideia de intervenção caridosa contra ‘ditadores perversos’.
Já foi assim com a Venezuela – e continua sendo, com menos sucesso, depois do fiasco do autoproclamado Juan Guaidó. Já foi assim com a Bolívia, e continua sendo, com menos sucesso, depois do fiasco da autoproclamada Jeanine Anez. E transcorreu com mais sucesso em países onde, após golpes destituintes, bastou apoiar alternativas eleitorais controladas. Bolsonaro, afinal, tem sua utilidade no projeto para o quintal latino-americano.
Cuba teme um pouco mais do que isso, em função de visitas militares americanas de alta patente na vizinhança, e aponta para USAID como responsável pelos protestos. De todo modo, os distúrbios em Cuba são o assunto da vez na mídia, assim como as críticas ao presidente que convocou cubanos a defenderem a revolução e os levou de fato às ruas.
As armas cubanas conhecidas são principalmente sua história de rebeldia e resistência, mesmo quando a ajuda do eixo socialista praticamente lhe faltou. Mesmo nas ruas por seu direito de traçar rumos próprios, a história deve pesar para que os cubanos de hoje busquem respostas que não ultrapassem os limites de soberania conquistada frente ao desejoso interventor do norte. É mais um teste pelo qual a ilha passa contra ameaças indescritíveis para a maioria dos povos hoje.
Apesar da desproporção das forças do adversário – algo que faz lembrar os ataques à Gaza pelo poderio militar israelense contra os foguetes da resistência – desta vez é possível para os sonhos de Miami contar com uma parcela da ilha dividida – de qual tamanho, é o que se verá a seguir.
O discurso é batido
Na cena pública e midiática, os Estados Unidos propagam a campanha batizada como SOS Cuba, como se a sorte da ilha pudesse ser definida fora, a partir do que expressam os contra revolucionários dentro, apoiados por uma espécie de ‘corredor humanitário’ organizado na Flórida. Não aparece na narrativa da ajuda intervencionista a hipótese de suspensão do bloqueio que impede Cuba até mesmo de vacinar-se com a própria vacina.
Está aí um SOS que antes de tudo precisa asfixiar o mesmo povo que parece querer socorrer.