Mídia ativismo no Fórum Social Mundial

Ativistas da comunicação na marcha de abertura do FSM 2011, em Dakar. Foto: Vanessa Silva, Ciranda

Tradução para o português: Fernanda Favaro

Desde quando surgiu, em 2001, proclamando que “um outro mundo é possível”, o Fórum Social Mundial (FSM) tem sido um elemento regular da paisagem da sociedade civil global. A cada dois anos reunindo dezenas de milhares de ativistas que representam uma enorme diversidade de movimentos e grupos de todo o mundo – mais recentemente, em 2011, em Dakar, Senegal – o evento é amplamente percebido como tendo uma função democratizante, proporcionando um espaço onde vozes anteriormente excluídas podem se unir e debater alternativas ao capitalismo neoliberal.

O FSM tem sido considerado uma emergente esfera pública global; no entanto, pouca atenção sistemática tem sido dada à forma como a mídia e a comunicação estão voltadas a fazê-lo ‘global’ e ‘público’. Aqui, eu analiso como o ativismo sobre mídias alternativas, no contexto do processo do FSM, pode contribuir para a criação de públicos democratizantes.

Uma esfera pública global?

Em sua Carta de Princípios, o FSM é definido como um “espaço aberto” para o “pensamento reflexivo”, o “debate democrático de ideias” e a “livre troca de experiências”. Combinado com sua autodeclarada ambição de ser um processo global, essa ênfase no discurso e no diálogo torna tentador caracterizar o FSM como uma esfera pública global emergente.

Apesar de atraente, não é totalmente certo caracterizar o FSM desta forma. Os críticos (com razão) destacaram os diversos motivos pelas quais o FSM está aquém dos critérios normativos associados ao conceito de esfera pública, apontando para sua falta de transparência, hierarquias internas e várias formas de exclusão. Teorizar o FSM como uma esfera pública global também é conceitualmente problemático, como Janet Conway e Jakeet Singh mostraram. Tradicionalmente concebido no âmbito do Estado-nação como um mecanismo para assegurar que o governo prestará contas, o conceito de esfera pública não pode ser diretamente “ampliado” e aplicado ao FSM, que não tem uma contrapartida soberana óbvia. Além disso, a política do FSM, muito debatida, de “espaço aberto” (essencialmente com base no princípio de que o fórum não age ou fala em nome de seus participantes) desafia o ideal de consenso que é o cerne do conceito habermasiano de esfera pública, apontando para um imaginário político completamente diferente, fundado no reconhecimento da diferença e da pluralidade irredutíveis.

O que tem estado praticamente ausente dos debates sobre o FSM e do conceito de esfera pública (que eu examino com mais detalhes aqui) é uma preocupação com o papel da mídia e da comunicação. Isso é surpreendente, dada, por um lado, a amplamente reconhecida observação de John Thompson de que a publicidade em grande escala em sociedades complexas é necessariamente mediada em caráter, e, por outro, o lugar de destaque que as tecnologias de comunicação têm ocupado nos estudos sobre redes transnacionais de movimentos sociais.

Tornando o FSM público

Ao olhar para a importância da mídia e da comunicação para a criação de públicos dentro do processo do FSM, vou me concentrar em como organizadores e ativistas estão tentando torná-la pública (e ‘global’) através da mídia e da comunicação. Falando mais claramente, isso se refere aos esforços para divulgar o conteúdo de mídia sobre o FSM e assegurar que isto atinja um público mais amplo possível. No entanto, como é amplamente reconhecido, o FSM tem consistentemente se esforçado para ganhar visibilidade na mídia. Aqui, em vez disso, eu quero mostrar como o ativismo sobre mídias alternativas – na forma de processos colaborativos e participativos de produção de mídia – pode fornecer uma base para a criação de públicos democratizantes. Em seguida, eu delineio algumas conclusões fundamentais decorrentes de investigação etnográfica realizada em fóruns sociais entre 2008 e 2011, e considero suas implicações para a forma como podemos entender a ideia de um “público global”.

Comunicação compartilhada

A marca particular do mídia ativismo que eu discutirei foi desenvolvida por uma rede predominantemente (embora não exclusivamente) de brasileiros e outros ativistas latino-americanos que usaram o FSM como um espaço para a construção de redes e experimentação de novas práticas de comunicação. Este conceito específico e a prática de comunicação que eles desenvolveram é conhecido como “comunicação compartilhada” (embora seu conceito de “compartilhamento” seja bem diferente daquele associado às práticas contemporâneas de mídia social).

A ideia de comunicação compartilhada surgiu na véspera do primeiro FSM, em 2001, por conta da preocupação de que o evento não receberia uma cobertura adequada da mídia. Os organizadores estavam preocupados com a ideia de que a mídia provavelmente apresentasse uma imagem distorcida do fórum ou simplesmente o ignorasse por completo, enquanto a mídia independente não tinha os recursos necessários para produzir uma cobertura abrangente de um evento tão grande. Como solução, uma pequena equipe de comunicação, dentro do comitê organizador do FSM, criou um sistema de publicação na web, ao qual foi dado o nome de Ciranda (uma forma de dança circular no Brasil). Baseado em copyleft, a Ciranda permitiu aos participantes compartilhar conteúdos livremente, proporcionando uma retomada muito necessária da mídia independente, muito antes das tecnologias Web 2.0 serem amplamente disponibilizadas.

Inicialmente surgido a partir da necessidade de facilitar o compartilhamento do conteúdo de mídia, o conceito de comunicação compartilhada logo adquiriu um significado muito mais amplo. A Ciranda não só ofereceu uma plataforma para a cobertura independente do FSM; também proporcionou a oportunidade para ativistas de mídia de diferentes partes do mundo se unirem, criando espaços de socialização que incentivaram o diálogo e um sentido de propósito comum.

Tendo tido um sucesso imediato no primeiro FSM, este exercício de comunicação compartilhada foi repetido nos fóruns subsequentes em Porto Alegre. Em 2005, a Ciranda (que tinha inicialmente focado em jornalismo do tipo “texto e imagem”) foi acompanhada por outros projetos de comunicação compartilhada que forneceram diversos apoios e equipamentos para os ativistas que trabalham com diferentes mídias, incluindo o Fórum de TV (para produtores de vídeo) e Fórum de Rádios (para rádios independentes e comunitárias). Projetos de comunicação compartilhada também foram implementados na edição de Caracas do FSM, em 2006, e no FSM de Belém, em 2009. Em outros anos, quando o FSM aconteceu fora da América Latina, os ativistas da comunicação compartilhada cobriram os eventos e desenvolveram conexões com ativistas de outras partes do mundo. Juntamente com o site da Ciranda, plataformas online para vídeo (wsftv.net) e conteúdo de rádio (www.forosocialradios.org) relativos ao FSM também foram desenvolvidos por grupos de trabalho transnacionais ligados à Comissão da Comunicação do Conselho Internacional.

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Participantes do Fórum de Rádios no FSM de Belém. Foto: Hilde C. Stephansen

Esses projetos de comunicação compartilhada formaram a base para o desenvolvimento de redes permanentes de ativistas e da ideia de uma política e uma prática de comunicação compartilhada. Ao longo dos anos, a Ciranda evolui de um exercício anual de produção de cobertura compartilhada do FSM para uma iniciativa permanente de notícias alternativas relacionadas com as áreas temáticas do Fórum. Sob o lema “uma outra comunicação é possível”, os ativistas de comunicação compartilhada têm tido como objetivo fundamental desenvolver um modelo de comunicação que esteja em consonância com os princípios do FSM e que siga uma lógica diferente da grande mídia.

Uma abordagem de “construção de movimento” para a comunicação

Como podemos entender o significado desta forma peculiar de mídia ativismo? Em primeiro lugar, acho que pela maneira pela qual os ativistas concebem a comunicação compartilhada como um processo que está indissociavelmente ligado à prática política, e muito diferente da abordagem de “relações públicas” comumente adotada pelas ONGs “mainstream”. Como comentou um ativista brasileiro com quem eu conversei, os projetos de comunicação compartilhada são “nada mais, nada menos do que processos de mobilização de grupos que têm como objetivo fazer uma outra comunicação no âmbito do Fórum”.

Comunicação compartilhada, em outras palavras, tem uma forte dimensão de construção de movimento. Usando fóruns sociais para engajar em uma política prefigurativa que demonstra o seu modelo democrático de comunicação, na prática, os ativistas de comunicação compartilhada prevêem a proliferação gradual de suas práticas, em todo o mundo, conforme novas pessoas estão expostas a elas. Como outra ativista brasileira explicou, “nós acreditamos que a partir do momento em que um grupo vem ao Fórum e entra em contato com esse tipo de processo de produção de conhecimento, seus integrantes podem levar essa ideia para além do Fórum, voltar para casa e colocar em prática este exercício coletivo de produção de conhecimento, no lugar onde eles fazem isso diariamente”.

Uma parte importante dos esforços dos ativistas para disseminar a prática da comunicação compartilhada tem sido, também, compartilhar seus conhecimentos e experiência com os movimentos e grupos nos locais onde o FSM é realizado, permitindo que se comuniquem com termos próprios. Isso está intimamente ligado a uma concepção do FSM como um processo político em curso, e não simplesmente como um evento para ser divulgado através da cobertura da mídia. Como uma das coordenadoras da Ciranda explicou, “Se eu for lá, fizer as minhas coisas, voltar para casa e deixar por isso mesmo, vou ter tratado o Fórum como um evento, eu vou ter feito a comunicação como um evento, e isso não vai ter contribuído em nada para que os movimentos sociais e as organizações da região onde o Fórum é realizado tenham mais ferramentas para comunicar com um novo conceito, uma nova perspectiva”.

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Ativista no Fórum Social Temático, em 2010, em Porto Alegre. Foto: Hilde C. Stephansen

O ponto crucial, aqui, é que os ativistas de comunicação compartilhada – muitos dos quais estão organicamente ligados aos movimentos que reportam – se enxerguem atuando em conjunto com mais do que simplesmente disseminando informações sobre os movimentos que participam do FSM. Em tal concepção, comunicação e mobilização para a ação coletiva são dois lados de uma mesma moeda, formando uma relação de reforço mútuo capturado eloquentemente pelo lema “comunicar para mobilizar para comunicar…”

Justamente porque os jornalistas independentes e comunicadores que participam dos projetos de comunicação compartilhada não são apenas repórteres, mas membros de vários movimentos, eles se tornam elos importantes de redes de movimento interno. A Ciranda e os outros projetos de comunicação compatilhada não só facilitam o compartilhamento de informações através da comunicação on-line, eles também oferecem ocasiões para que ativistas de diferentes movimentos troquem conhecimentos e experiências, e construam relações de solidariedade. Como um participante do Fórum Radio explicou, “a nossa participação na cobertura [compartilhada] sempre tem como consequência nos tornarmos uma rede viva”. Essas redes de solidariedade entre os ativistas de mídia têm um papel importante a desempenhar na criação de links entre os diferentes movimentos, constituindo a infraestrutura social do que poderia ser entendido como um tipo diferente de público mundial em formação.

Repensando a ideia de um público global

O tipo de público global que está sendo lentamente forjado por esses ativistas é mais subterrâneo, menos espetacular do que aquele que as manifestações de massa dos fóruns sociais torna visível. Sua continuidade e expansão não dependem da capacidade do FSM em ganhar a atenção da grande mídia. Como espero ter mostrado, construir o público do FSM através da comunicação compartilhada envolve mobilização, movimento de construção e proliferação de práticas alternativas de comunicação, bem como a circulação da cobertura da mídia sobre o FSM. Isto envolve um laborioso processo de construção de relações de solidariedade, envolvendo novos atores na produção de conteúdo de mídia, e desencadeando uma dinâmica nos locais onde o FSM é realizado.

As práticas que descrevi acima sugerem que o que está em jogo na formação de públicos “globais” não é a construção de uma esfera de comunicação unificada em escala evidentemente global, orientada para a formação de “opinião pública” geral que pode responsibilizar o poder estatal.

O que é perceptível nas práticas de ativistas de comunicação compartilhada é um sentido diferente da globalidade. Para eles, a construção de um “FSM público” global tem a ver com a proliferação de práticas de comunicação compartilhada que permitam que movimentos e comunidades ao redor do mundo construam seus próprios públicos em diferentes escalas. Esses públicos podem estar ligados e sobrepostos, mas eles não estão incluídos no âmbito de uma abrangente esfera pública global “geral” em uma hierarquia de escala. O que os liga é um sentimento de solidariedade na diferença e disposição para o engajamento no diálogo e na produção de conhecimento coletivo.

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