Às 3 da tarde deste domingo (8/12), uma bandeira uruguaia será hasteada, de modo performático, no centro de São Paulo. Estará dado o sinal de largada para uma sucessão de intervenções artísticas, oficinas, rodas de conversa, cenas de música, teatro, graffiti. Às 18h33, haverá cerimônia simbólica de casamento coletivo e beijaço. Centenas de pessoas celebrarão, em festa, as notáveis conquistas político-culturais alcançadas pelo país vizinho, nos últimos anos: reconhecimento do casamento gay, direito ao aborto e, muito em breve, legalização do uso e plantio da maconha.
Tudo se dará num palco emblemático para as novas lutas sociais: o Minhocão, enorme elevado viário no centro de S.Paulo, recuperado nos últimos anos para festas que reivindicam o Direito à Cidade. Em meio ao desfrute (veja programação ao final), valerá a pena fazer duas perguntas: como isso foi possível, enquanto o Brasil se defronta como assombrosa influência do conservadorismo em suas decisões institucionais? Que caminhos nos aproximariam de tais avanços?
Natural de Montevidéu, a capital, o escritor Eduardo Galeano costuma dizer que o Uruguai é “o paradoxal país em que nasci e voltaria a nascer”. Parece palpite certeiro. A formação histórica e econômica não difere muito da nossa. Colônia espanhola (disputada com frequência por Portugal), o Uruguai tornou-se, após a independência, exportador de matérias-primas: à época, carne e couro. Ainda hoje, os produtos primários são quase onipresentes em sua pauta de vendas ao exterior.
Além disso o Uruguai, um “paraíso fiscal”, possui sistema financeiro agigantado. Seria de esperar, nestas condições, uma influência massacrante do conservadorismo rural e da oligarquia financeira, sempre empenhada em concentrar riquezas e investir contra direitos sociais. No entanto, a nação foi pioneira da América do Sul no reconhecimento do voto feminino (1927) e na legalização do divórcio (1907, 70 anos antes do Brasil). Garantiu educação obrigatória e gratuita ainda no século XIX. Reduziu a jornada de trabalho para 8 horas nos anos 1910 (antes dos EUA e da França) e regularizou, à época, a venda de bebidas alcoólicas, revertendo os lucros em saúde pública.
A explicação para as contradiões destacados por Galeano está, provavelmente, na política. Desde sua formação, há duzentos anos, o Uruguai viveu três enormes impulsos transformadores. Eles abalaram as raízes conservadoras e constituíram, aos poucos, uma tradição de relativa igualdade, laicismo e rejeição de preconceitos morais. O primeiro grande movimento vem das lutas de independência.
Ao contrário do que ocorreu no Brasil, a autonomia em relação à Espanha não foi promulgada pelo príncipe regente, mas conquistada em luta comandada por José Artigas, um militar esclarecido e republicano. Por sua inspiração, o Congresso do Oriente, formado após a independência (em 1815), estabeleceu a distribuição de terras (inclusive para os negros e viúvas), a primeira tentativa de criar a escola pública, leis aduaneiras que buscavam promover a produção nacional. O processo foi sufocado um ano depois, quando a coroa portuguesa, então sediada no Brasil, invadiu o país (submetendo-o até 1925).
A segunda grande arrancada anti-oligárquica começou quase um século depois e foi comandada – outro paradoxo – por um membro da elite. O jornalista José Battle y Ordoñez governou o país por dois mandatos, entre 1903 e 1915. Vinha de uma família de políticos (o pai fora presidente) e de um dos dois partidos tradicionais, o Colorado. Mas encerrou a última guerra civil e estava em contato com o clima de agitação social e questionamento da ordem burguesa que marcava a Europa. Era um admirador da Revolução Soviética e de Lênin, sobre quem escreveu um obituário digno1.
Coerente com a ideia de superar as antigas relações sociais, canalizou a riqueza agrícola de um país pouco povoado (3,5 milhões de habitantes hoje; apenas 1 milhão, à época) para construir o que foi, provavelmente, o primeiro estado de bem-estar social do mundo. Estatizou e universalizou os serviços públicos e de infra-estrutura, estendeu a previdência social para todos. No campo do trabalho, novas leis instituíram, além da redução da jornada, a indenização para os demitidos. No terreno moral, o direito ao divórcio estabelecia que a separação poderia ser requerida por simples manifestação de vontade da mulher, algo quase inconcebível para a América do Sul de então.
O Uruguai não ficou imune, ao longo do século XX, às turbulências e retrocessos que marcaram a região. Uma tentativa de industrialização, iniciada no pós-II Guerra, fracassou em pouco tempo, sufocada pelo peso dos setores primário e financeiro. Uma ditadura militar, instaurada “a convite” de um presidente civil estendeu-se entre 1973 e 85. Ao se esgotar foi substituída, como em toda a América Latina, por uma sucessão de governos claramente identificados com a ideia de supremacia dos mercados sobre as sociedades.
Mas as tradições igualitária e libertária, além do apreço pelos serviços públicos voltariam a se manifestar já em 1992, num episódio inesperado. No período em que o pensamento neoliberal era mais forte, um plebiscito convocado por iniciativa popular interrompeu, com apoio de 72% dos eleitores, as privatizações. Uma década depois, quebrava-se um século e meio de domínio da política institucional pelos partidos Colorado e Blanco. A Frente Ampla, formada em 1971 por socialistas, comunistas e battlistas (a corrente que tem como referência as ideias do presidente Battle) – e clandestina durante toda a ditadura militar –, conqusitava a presidência.
Os mandatos dos dois presidentes que governaram desde então (Tabaré Vasquez e José Mujica) também não são isentos de contradições. A economia continua baseada em agropecuária e finanças. No mandato de Tabaré, o Uruguai envolveu-se numa áspera disputa com a Argentina (a “crise das papeleras”), ao autorizar a instalação, em seu território, da empresa finlandesa de celulose Botnia, rechaçada no país vizinho por provocar poluição.
Mas certas particularidades têm impedido que o Uruguai escorregue para o pântano de democracia esvaziada que se propaga em todo o mundo. Num quadro institucional menos fisiológico e confuso que o brasileiro, a Frente Ampla tem conquistado maiorias parlamentares e governado sem recorrer a coalizões de ocasião. Seu programa econômico e sua visão das relações intenacionais são heterogêneos. Talvez o que melhor a caracterize e unifique seja, precisamente, o compromisso com os serviços públicos, o laicismo e a rejeição aos preconceitos.
Suas relações com os movimentos sociais e a sociedade civil seguem ativas, depois de dez anos no governo. Um grupo de militantes, em seu interior (as Redes Frenteamplistas) mobiliza-se para articular formas de democracia direta, em especial as articuladas pela internet. Teve papel importante nas disputas internas da Frente Ampla que definiram a candidatura de José Mujica às eleições presidenciais de 2009. O perfil despojado do atual
presidente somou-se a sua coragem para levar adiante as propostas de libertárias do partido. A legalização do aborto até a 12ª semana de gravidez veio em 2012. O o casamento gay foi acolhido pela legislação neste ano, apesar dos questionamentos da igreja católica. Inclui a adoção de crianças por casais homossexuais.
Caso aprovada, nos próximos dias, a legalização do uso da maconha será um exemplo internacional. É bem mais completa que a vigente em países na Holanda, por exemplo. Segundo a nova lei, a ser votada em dias no Senado, o plantio para consumo próprio é permitido (dentro de limites); e o Estado controlará a venda do psicoativo, fazendo registro de seus usuários e estabelecendo tetos para consumo. Mujica, prefere afirmar que não está legalizando a maconha, mas regulamentando seu uso – ao invés de conformar-se à hipocrisia.
Por isso, a celebração em São Paulo, neste domingo, é mais que uma festa. Ela oferece a oportunidade de refletir sobre como ainda é possível – mesmo em tempo de declínio da política – explorar as contradições do sistema, alcançar vitórias parciais importantes e sondar caminhos para reinventar a democracia.
Domingo, 8/12
O Uruguai é aqui
Manifestação pela legalização do aborto, casamento gay e maconha
Convidam:
Marcha da Maconha São Paulo, Marcha Mundial das Mulheres, Coletivo Anastácia Livre, Liga Brasileira de Lésbicas, Bloco da Esquerda Canábica, Coletivo Desentorpecendo a Razão, Associação Cultural Cannábica de São Paulo e Centro de Convivência É de Lei.
Programação:
15h
– Hasteamento da bandeira uruguaia
– Grafite
– Grupo de palhaços
– Oficina de cartazes
– Música temática
16h20
– Rodas de conversa sobre legalização das drogas, do aborto e do casamento homoafetivo
17h42
– Banda Chaiss na Mala
– Banda Emblues
– Grupos de dança e teatro
18h33
– Cerimônia simbólica de casamento coletivo e beijaço
– Intervenção de redução de danos
1Lá se lê, por exemplo, que “Esta revolução [soviética] sacudiu em sua medula uma nação que, em pleno século XX, consevava a estrtura dos tempos bárbaros. Tem de ser fecunda e positiva, apesar de seus erros e contradições, que são oc companheiros inseparáveis de todo empreendimento humano”.
Publicado originalmente no site Outras Palavras
http://outraspalavras.net/blog/2013/12/04/por-que-o-uruguai-nao-e-aqui/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-uruguai-nao-e-aqui