Foi-me solicitado fazer um balanço do processo do FSM, depois de doze anos de existência. Não posso apresentar uma lista do que ocorreu nesse tempo, o que seria inclusive fastidioso. Nem tampouco analisar em poucas páginas os altos e baixos do processo, com a realização – agora a cada dois anos – de eventos mundiais maiores e menores, Fóruns Sociais continentais, nacionais e até locais que se mantém vivos ou desapareceram, Fóruns Temáticos que se multiplicam pelo mundo afora; ou falar das articulações e redes, assim como novas campanhas, que nasceram nesses encontros, na luta pela construção do “outro mundo possível”. Darei somente alguns elementos que talvez permitam sentir a dinâmica do processo, apresentando o que aconteceu no FSM 2013, em Tunis.
O mínimo que se pode dizer desse FSM é o que disse um dos seus veteranos, o cientista político norte-americano Immanuel Walerstein, em seu “Comentário” n. 350 i: O Fórum Social Mundial está vivo e está bem.
Eric Toussaint, outro veterano, do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, foi mais completo em entrevista a Sergio Ferrariii: o Fórum Social, de maneira incontestável, se mantém como o único lugar e o marco mundial onde se encontram os movimentos sociais. Nesse sentido, e na ausência de outra alternativa, continua sendo muito importante.
E o próprio titulo da avaliação do sociólogo canadense Pierre Baudetiii é significativo: Porque o Fórum Social Mundial de Tunis foi um sucesso?
De fato pode-se dizer que ele foi um grande sucesso, e o sucesso de um método. Nos eventos mundiais do processo do FSM se aplica um método, expressado basicamente na sua Carta de Princípios, que as organizações tunisinas que o promoveram souberam respeitar, apoiadas em outras de outros países do Maghreb, assim como corresponsabilizando membros do Conselho Internacional do FSM através de sua participação até em decisões organizativas. E souberam igualmente obter o apoio logístico do governo sem que este interferisse no evento – uma vez que ele é uma iniciativa da sociedade civil, como o define a Carta de Princípios.
Com isso foi criado durante cinco dias, na Universidade El Manar de Tunis, um verdadeiro espaço aberto, para o reconhecimento mutuo, o intercambio de ideias e experiências, a identificação de convergências e de possibilidades de novas articulações a nível local, regional e mundial. A cada evento mundial o método é melhorado, a partir da experiência anterior; e é influenciado, no conteúdo dos debates realizados – definidos pelos próprios participantes por meio das atividades auto-organizadas que inscrevam – pela realidade mundial e pela realidade local.
Por isso Eric Toussaint pode dizer, na entrevista citada: com o FSM entrando em contato com uma sociedade em movimento, em ebulição, produziu-se uma reação química, uma interação sumamente interessante.(…). Num país recém-saído de 42 anos de ditadura, esse resultado “químico” produziu um sentimento generalizado de alegria e satisfação ao final do Fórum.
Naturalmente houve quem fizesse criticas, muitas vezes por uma insuficiente compreensão do caráter do FSM e da metodologia nele utilizada. Mas é significativo que 300 pessoas tenham ido, na ultima manhã do Fórum, à Assembleia de Convergência em que se discutiria o futuro do processo, marcada pelo entusiasmo de todos. Este tipo de Assembleia é uma das inovações introduzidas no Fórum de 2009 que já se consolidaram. Em 2013 houve 30 Assembleias, auto-organizadas, em que se discutiu a continuidade das articulações ou foram elaboradas suas declarações finais, pois o Fórum enquanto Fórum não adota uma Declaração final única.
A discussão sobre o próximo FSM, por sua vez, já tinha sido aberta com uma noticia vinda da India: as organizações que promoveram o Fórum de 2004 em Mumbai tinham se reunido para refletir sobre a realização do FSM de 2015 naquele país. Na Assembleia de Convergência acima citada se soube que animadores de mobilizações no Quebec também se propõem a sugerir que o próximo FSM seja no Canadá. E na própria reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada em seguida ao Fórum, colocou-se a possibilidade de se voltar ao Maghreb em 2015.
O Fórum reuniu em torno de 60.000 pessoas (53.000 formalmente inscritas), que lotaram os conjuntos de edifícios da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas e da Faculdade de Ciências. Um verdadeiro formigueiro humano – o relevo da área permitia visões de conjunto – movimentava-se dentro deles e no trajeto entre os mesmos, passando pelo restaurante universitário ou pelos bares montados para a ocasião, vencendo filas por um prato típico, ou por um sanduiche para correr para alguma das quase mil atividades que se realizaram, em três horários de duas horas e meia cada um, ao longo de cada dia.
Cartazes, tendas, banquinhas, livre distribuição de panfletos, denuncias e convites para atividades, em cinco línguas (pela primeira vez o árabe era uma língua oficial do evento), grupos conversando onde pudessem criavam o ambiente festivo típico dos Fóruns. O sol sempre presente ajudou a aumentar a alegria nos reencontros de antigos participantes ou entre membros ou não de 5.085 organizações de 128 países. Grandes delegações se espalhavam pelos espaços, como a francesa com 500 pessoas, ou a brasileira com 200 membros de sindicatos, ONGs e movimentos sociais, ou a suíça, com 60 pessoas entre as quais parlamentares que participavam também do Fórum de Parlamentares, evento paralelo ao Fórum Social Mundial que já se tornou tradicional.
Foram dados grandes passos para consolidar a opção de ”estender” o Fórum pela Internet, para que grupos pelo mundo afora pudessem interagir com os presentes em Tunis. Destes, a maior parte era de tunisinos, assim como de tunisinas, com as lutas em que se empenham em seu pais pela igualdade das mulheres. Mas os nacionais de outros países árabes como o Egito, o Marrocos, a Algéria, a Palestina, o Iraque, a Libia, eram muitos. Todos puderam assim ouvir militantes de outras lutas, intercambiar e debater, livremente, com eles. E participar de um encontro político que é de tipo novo até no mundo democrático, pela sua horizontalidade, auto-organização, respeito mutuo, diversidade, na nova cultura política que se constrói no processo do FSM. Um tipo de encontro que era novo também para os que vinham pela primeira vez a um Fórum Social Mundial, como por exemplo os dois terços da delegação francesa.
Houve também uma importante participação de jovens. Muitos, entre os tunisinos e tunisinas, eram estudantes da própria universidade, estimulados e mobilizados pela sua reitoria: alem de abrir a Universidade para o FSM e conseguir que o governo nela realizasse as obras necessárias, ela captou a oportunidade, na realidade tunisina, de um encontro do tipo e com os princípios adotados pelo Fórum. Esses estudantes tanto participavam das atividades como atuavam como voluntários para ajudar no que fosse útil, como identificar os locais das salas de reuniões para quem se perdesse pelo campus…
De fato os organizadores tunisinos realizaram o milagre, pela primeira vez em 12 anos de FSM, de imprimir o seu programa três dias antes do seu inicio. Mas a indicação dos locais era menos clara, com as pessoas descobrindo suas salas até hora e meia depois do inicio da atividade. Mas como sempre acontece nos Fóruns, seus participantes tomavam a iniciativa de buscar soluções aos problemas, numa perspectiva de co-responsabilidade de baixo para cima.
Como sempre os temas discutidos no Fórum foram variadíssimos, da análise da crise e seus efeitos à questão das migrações, da apropriação de terras, do racismo, da denuncia dos drones ou dos riscos das usinas nucleares ou dos projetos de mineração. Wallerstein, no “Comentário” já citado, diz que em todos os assuntos se combinavam os sentimentos de medo e de esperança, exemplificando com os debates sobre a superação do capitalismo ou a introdução de paliativos contra a desigualdade, o papel dos partidos políticos, o dos BRICS, o atual programa da esquerda mundial, a “descolonização” do próprio processo FSM. Lá estavam também, desenvolvendo livremente atividades na sua “Praça Global”, muitos jovens dos movimentos sociais estimulados pela Primavera Árabe – que se iniciara exatamente na Tunísia – como os Indignados da Espanha ou os Occupy dos Estados Unidos.
Os enfrentamentos concretos do mundo de hoje emergiram necessariamente, quando por exemplo uma bandeira de Israel foi colocada no chão para que fosse pisoteada por quem quisesse protestar pelo que se passa hoje na Palestina. Ou como quando marroquinos se desentenderam com militantes Sarahouis – numa das Assembleias de Convergência, a dos Movimentos Sociais, interrompendo a discussão e aprovação da Declaração final dessa Assembleia. Mas também houve discussões com respeito mutuo, como sobre a possibilidade de convívio democrático, na própria Tunísia, entre um Islam político e os setores da sociedade independentes de opções religiosas.
No ultimo dia, em vez de terminar o Fórum com uma Assembleia das Assembleias, que desse uma visão de conjunto de todo o discutido e proposto, pela apresentação dos resultados de cada Assembleia de Convergência – sistema nunca muito bem sucedido – todas elas se deslocariam para a avenida principal de Tunis, dispondo cada uma de 20 metros quadrados para apresentar seus resultados umas às outras assim como à população da cidade. Mas não houve fôlego para concretizar essa inovação. E o Fórum terminou com uma marcha dedicada ao povo palestino, cujo sofrimento é um dos desafios mais difíceis da região.
É isso, na verdade, um Fórum Social Mundial: um grande encontro de retomada de perspectivas, alento e compromissos dos que lutam pelo “outro mundo possível”. E é a eles e não ao Fórum – um simples instrumento – que cabe a tarefa de transformar o mundo.
Pode-se afirmar assim que não se passa o que desejariam os que dizem – pela ausência de noticiário da grande mídia, que só se interessa por novidades – que o FSM está se esvaziando. O importante papel que ele cumpre ficou evidente especialmente para os tunisinos, em sua difícil luta de redemocratização do país, na diversidade e na recusa da violência, dois dos princípios básicos da Carta do FSM. Por isso mesmo até as forças políticas que participam do governo ficaram agradecidas ao fato do Fórum Social Mundial de 2013 ter sido realizado na Tunísia – com um claro sentimento de alivio, pelas tensões provocadas quatro semanas antes por um assassinato político.
Já fora do Fórum, outra discussão que ocorreu em Tunis foi sobre o Conselho Internacional do FSM, que vive uma crise criada, segundo muitos de seus membros, pela sua burocratização. Ele se reuniu imediatamente depois de terminado o Fórum e organizou grupos de trabalho para aprofundar durante seis meses essas questões, assim como as propostas para a realização do próximo Fórum Social Mundial.
Uma das frases de Pierre Baudet sobre o Fórum, no artigo acima citado, se aplica também ao CI: o FSM, os FSM deveríamos dizer, são instrumentos que é preciso aperfeiçoar, no que será uma caminhada muito longa…