Pinheirinho: Justiça pra quem?

“Eles viram minha filha olhando pela porta e entraram gritando: ‘você sai agora com a sua mãe senão eu atiro em você aqui mesmo’ e eu gritei que eu não era nada, mas que se ele matasse a minha filha eu matava ele. Mesmo assim ele deu muitos chutes nas pernas dela que ficaram cheias de manchas roxas. Não havia um conselheiro tutelar, um assistente social, nada. Só polícia batendo e os helicópteros jogando bombas”, conta Maria Josefa da Silva sobre a desocupação da área do Pinheirinho, em 22 de janeiro de 2012. Ela era uma das primeiras moradoras da ocupação na zona sul de São José dos Campos, a cerca de 100 quilômetros de São Paulo. Josefa possuía uma casa com dois cômodos onde sustentava os três filhos, um dos quais com problemas de coração, trabalhando com reciclagem de materiais. “Se alguém que tenha coração de pai, de mãe, que nos dê uma ajuda, uma casa, um lugar qualquer. Senão eu vou pra baixo de uma árvore com meus filhos”, afirma.

Histórias como essa e muito, muito mais tristes, existem literalmente às milhares. Para colhê-las, bastava visitar algum dos abrigos improvisados para onde foram levados os ex-moradores para viverem quase um mês em condições sub-humanas. Hoje já nnao é possível pois foram todos fechados, um a um, com os desabrigados novamente expulsos sob ameaças até de homens armados (apontados como traficantes) e apoio da prefeitura, numa clara estratégia de desmobilização e enfraquecimento do grupo. Poucos receberam o “auxílio-aluguel” de R$ 500,00, insuficiente para alugar um quarto-sala na cidade. Assim, o tormento dessa população apenas começou com a chamada “reintegração de posse”, que tirou de suas casas em poucas horas, a partir das 5:30 da manhã de um domingo, entre 1.600 e 2.000 famílias, somando umas 10 mil pessoas. Foram usados cerca de 2.000 policiais militares – PMs e Guardas Civis Metropolitanos – GCMs e dois helicópteros. Nos primeiros dias da operação o Poder Público teria gasto cerca de R$ 10 milhões em deslocamento de tropas, alimentação e aluguel de equipamentos para a demolição das casas ocorrida antes que as famílias pudessem retirar seus pertences.

A área de 1 milhão de m2, que pode ter sido grilada já que toda a família dos proprietários originais foi morta numa chacina em 1969, pertence à massa falida da empresa Selecta, do especulador Naji Nahas, preso por falência fraudulenta em 1989 e em 2008 na Operação Satiagraha, junto com o banqueiro Daniel Dantas e o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta. A massa falida, contudo, já não tem dívidas trabalhistas e nem com credores privados, de modo que a eventual venda da área desocupada deve reverter a Nahas, que no último mês conseguiu desconto milionário na dívida de IPTU. O terreno nunca teve construções, tendo sido usado apenas como garantia para dois empréstimos suspeitos ainda nos anos 1980, dentro do esquema que levaria à quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. A partir de 2004 passou a ser ocupado por movimentos de trabalhadores sem-teto. Segundo levantamento realizado pela prefeitura em dezembro de 2010 “para desenvolver o projeto de urbanização pelo Governo do Estado de São Paulo/CDHU e financiamento pelo Governo Federal/Ministério das Cidades, em parceria com a entidade criada pela ocupação” havia 81 pontos comerciais, seis igrejas e um galpão comunitário. A maioria dos moradores tinha menos de 18 anos (57,7%), 415 estavam inscritos em programas sociais e 1.490 crianças e adolescentes frequentavam a escola. Havia, ainda centenas de idosos e deficientes físicos.

Desse modo, dezenas de casos escabrosos de violações dos direitos humanos na reintegração de posse foram relatados nas audiências públicas realizadas na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa e no Senado Federal, por mais que o senador Aluysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) continue afirmando que não houve violência alguma e tudo não passe de uma armação política de partidos que querem se aproveitar eleitoralmente da “miséria alheia”. Além das denúncias ainda não comprovadas de mortes e ocultação de cadáveres, há pelo menos um ferido à bala, David Furtado, atingido por um tiro de revólver disparado por um GCM. Outro ferido grave é o aposentado Ivo Teles dos Santos, de 69 anos, que segue internado depois de ter sido espancado por três PMs e sofrido um derrame. Já Antônio Dutra Santana teria morrido atropelado por um carro atingido por uma bomba de feito moral. Isso sem falar na denúncia do senador Eduardo Suplicy (PT-SP) do estupro de duas jovens e um rapaz por uma equipe da ROTA, polícia “de elite” paulista, que dava apoio à desocupação no bairro vizinho do Campo dos Alemães. A Defensoria Pública deve entrar na próxima semana com cerca de 800 ações individuais contra o poder público para indenizações de danos morais e materiais.

Ação ilegal

Para o Defensor Público de São José dos Campos, Jairo Salvador, que trabalha na assessoria jurídica dos ex-moradores desde 2007, toda a ação no Pinheirinho não é somente imoral, mas ilegal. Segundo ele, o pedido original de reintegração de posse interposto pela Selecta na 6ª Vara Cível de São José dos Campos foi indeferido em 2005. Anos depois, um juiz da 18ª Vara teria acatado a liminar, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP derrubou sua decisão, julgando-o incompetente para o caso, e devolveu o caso à 6ª Vara. “Existem dois recursos pendentes que o TJSP senta em cima e não julga, justamente para não sair do seu âmbito de decisão e inaugurar outra instância, que é o Superior Tribunal de Justiça – STJ, e eles perderem o controle da situação”, diz Salvador. “Quem demorou esse tempo todo na Justiça, porque não se conformou com o encaminhamento da liminar, foi a massa falida. O recursos que os ocupantes pediram, julgados pelo STJ, nós ganhamos todos”.

Mesmo assim, em 2011, a juíza da 6ª Vara, Márcia Loureiro, resolveu retomar a reintegração aceita pela 18ª Vara. Quando alertada sobre a decisão do TJSP, reformulou sua sentença dizendo ter se expressado mal e que na verdade estaria “reestruturando” a decisão de 2005. Sua alegação é de que a prefeitura nunca havia sinalizado com a possibilidade de urbanização da área “tanto que havia, uma ação demolitória desses imóveis junto à Fazenda Pública”, afirmou em entrevista ao jornal O Vale. Pela sua visão, o Governo Federal apenas “assinalava com intenções por meio de pessoas de terceiro e quarto escalões” mas não haveria dinheiro para a desapropriação. “Chega uma hora em que se não há uma solução, negociação ou acordo entre as partes cabe ao juiz decidir”. Com isso, foi expedida a ordem de reintegração na qual, em suas palavras, a PM “com muita competência desempenhou um serviço admirável que é motivo de orgulho”.

Em nenhum momento a juíza levou em consideração o princípio básico da função social da propriedade urbana, definido nos artigos 5º, 170 e 182 da Constituição. Ela desconheceu o despacho do juiz Silvio Pinheiro, da 1ª Vara da Fazenda Pública, proibindo a demolição das casas. Ela também ignorou o estudo da própria prefeitura encaminhado pela secretária de Governo do município, Claude Mary de Moura, ao assessor da presidência da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado – CDHU, Antonio Lajarin. Ela menosprezou, ainda, a importante presença na cidade para cuidar dessa questão de deputados, senadores e representantes do Governo Federal, como o secretário nacional de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência da República, Paulo Maldos.

Pior, foi a atuação do TJSP, na figura de seu presidente, Ivan Ricardo Sartori, que passou por cima de um acordo formal realizado em 18 de janeiro entre o juiz Luiz Beethoven Ferreira, da 18ª Vara Cível de São Paulo, o advogado da Selecta, Waldir Helu, o síndico da massa falida, Jorge Uwada, o senador Suplicy, o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) e os deputados estaduais Adriano Diogo (PT) e Carlos Giannazi (PSOL) para adiamento da reintegração por 15 dias. Mais tarde, o juiz Ferreira disse que tinha voltado atrás no acordo, mas essa decisão só seria publicada no dia 26 de janeiro, quatro dias depois da desocupação. Até hoje ele não justificou esse fato.

Como havia ainda uma liminar da juíza federal Roberta Chiari, (confirmada depois pelo desembargador Antônio Cedenho, do TRF da 3ª Região, reconhecendo o interesse da União), determinando que a PM e a GCM não participassem da desocupação, Sartori enviou o juiz Rodrigo Capez, para coordenar pessoalmente a reintegração de posse junto ao comando da PM podendo, inclusive, repelir forças federais. O trecho do despacho beira à instigação de um confronto armado: “Nesse contexto, e para preservar a autoridade da decisão do Tribunal de Justiça, instruo V. Exa. a prosseguir na execução do decisório estadual, por conta e responsabilidade desta Presidência. Autorizo, para tanto, requisição ao Comando da Polícia Militar do Estado, para o imediato cumprimento da ordem da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, repelindo-se qualquer óbice que venha a surgir no curso da execução, inclusive a oposição de corporação policial federal.”

Manda sua presidenta falar comigo

De posse dessa ordem, o aparato repressivo da PM e GCM de fato repeliu à bala, mesmo que de borracha, toda e qualquer tentativa de interferência. Paulo Maldos contou na audiência pública de São José dos Campos que tentou argumentar com o comando. “Me dirigi até o grupo de soldados. Quando cheguei até uns oito metros fui advertido que parasse e vi armas em minha direção. Dei a volta e fiquei a uns vinte metros de distância […] de repente sem mais nem menos, eu senti um ferimento. Eu recebi uma bala de borracha na perna esquerda. […] Por volta de 11:00, tentei novamente acessar o comando da operação. […] Apresentei meu cartão da Presidência da República, com brasão da Secretaria Nacional. Ele leu e falou que eu não entrava. Ele falou: você volta e manda sua presidenta falar comigo”.

A experiência do Defensor Público não é muito diferente, como disse Jairo Salvador na audiência da Alesp: “às 6:15 da manhã eu cheguei ao local, me dirigi ao comandante da operação e fui recebido à bala, bala de borracha. Consegui não ser atingido, […] me dirigi ao Major Paulo para entregar a ele a ordem da Justiça Federal e ele rindo, quase em transe, me disse ‘o senhor não é oficial de justiça, eu não vou receber a ordem’. Eu pedi para falar com o coronel Messias e ele disse ‘o coronel tá no helicóptero, se você conseguir subir pode entregar a ele’ […]. Às 9:00, com a operação já em andamento, o juiz determinou que fosse suspensa, expediu o mandato e entregou ao oficial de justiça. Fomos direto ao local da operação procurar o comandante, o coronel Messias, fomos recebidos à bala novamente, mesmo nos identificando com as nossas credenciais, a oficial de justiça com a carteira. Conseguimos furar o cerco, fomos aonde estava o coronel e lá eu presenciei uma cena que eu jamais imaginei ver na minha vida”.

Não existe lei nesse país

“Primeiro que o mandato entregue por um oficial de justiça foi pego por um juiz, pelo juiz assessor da presidência (Rodrigo Capez). Imediatamente eu intervi e falei ‘esse mandato se dirige ao comandante da operação’ […]. A oficial pegou e entregou na mão dele. O coronel Messias, visivelmente abalado, tremendo, recebeu ordens do juiz […]: ‘escreva aí, comandante, que o senhor não vai cumprir a ordem’. E assim ele fez. Ele se submeteu a uma ordem de um juiz que não tem nada a ver com o processo. Desvirtuou todas as normas que eu conheço desde que comecei no Direito, como o princípio do juiz natural. Isso é vergonhoso. Eu me envergonho da justiça que eu tenho nesse país […]. Existe uma ordem de um desembargador federal que está valendo, não foi cassada, não foi nem objeto de recurso. […] Não existe lei em São Paulo. Não existe lei nesse país. Cada um faz o que quer, é só ter força para cumprir o que quer. […] O mais importante não é só a indignação, não é só a solidariedade. É que isso não fique impune. Que esses atos tenham consequência, doa a quem doer”, pede Salvador.

E talvez, apenas talvez, tenha consequência. Logo nos dias seguintes à desocupação, várias ONGs reuniram dados, documentos e depoimentos num amplo relatório sobre violações dos direitos humanos enviado para o o Conselho de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. No dia 1º de março, conforme havia prometido na audiência no Senado à qual faltaram todos os convidados do executivo e judiciário paulistas envolvidos no caso, o Senador Suplicy entregou as denúncias que recolheu ao Conselho Nacional de Justiça, para que o órgão analise e julgue as ações do TJSP. Já o procurador Márcio Sotelo Felippe, que foi procurador geral do Estado no governo Mário Covas, afirma que o caso “é crime contra a humanidade, tipificado no Estatuto de Roma e pode levar os responsáveis, incluindo o governador Geraldo Alckmin, o presidente do TJSP, Ivan Sartori, o prefeito de São José dos Campos, Eduardo Cury, e Naji Nahas a terem mandado de prisão expedito pelo Tribunal Penal Internacional”. Nada disso, no entanto, basta ou é rápido o suficiente para atender aos desabrigados.

“O que queremos é uma solução, um terreno, porque aqui tem pedreiro, eletricista, encanador, e a gente pode reconstruir tudo de novo. O povo é solidário, um dá um fogão, outro dá outra coisa, e a gente trabalha pra comprar o que faltar. Só precisa saber que dali a gente não sai mais”, diz José Adilson Soares Silva, que vivia há seis anos no Pinheirinho. “Eu vou te dizer uma coisa, eu como nordestino, cearense, gosto muito do Lula. Se fosse ele, isso não tinha acontecido. Queria que Dilma tivesse ao menos dado uma declaração, falado alguma coisa”. Na verdade ela falou, chamou de “barbárie”. Mas foi numa reunião fechada com fundadores do Fórum Social Mundial em Porto Alegre. No mesmo evento, a ministra da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, desconversou quando perguntada diretamente e afirmou que o Governo tinha que respeitar o “Pacto Federativo” e não poderia contrariar decisões jurídicas. Na audiência do Senado, a Secretária Nacional de Habitação, Inês Magalhães, se comprometeu a buscar uma solução definitiva, mas deixou nas entrelinhas que ainda depende que o prefeito Cury, do PSDB assim como Geraldo Alckmin, mude a lei de zoneamento da área, de industrial para residencial, para que o Governo possa desapropriar o terreno. Um detalhe jurídico não tão pequeno em ano eleitoral em que PT, PSDB, PSTU e PSOL irão disputar a administração de São José dos Campos e outras cidades usando Pinheirinho como munição nas campanhas.

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