Em A chinesa, de 1967, Jean-Luc Godard filma o dia-a-dia de um coletivo maoísta, às vésperas do Maio de 1968. Baseado no romance Os demônios, de Dostoievski, os personagens são jovens estudantes de Paris, em processo de imersão no imaginário radical dos anos 1960. Passam os dias entre densas leituras marxistas, canções, palavras-de-ordem e cartazes políticos, planejando a iminente revolução. Na câmera de Godard, o sisudo visual militante se converte no pop. O preto-no-branco do discurso revolucionário se colore e se diversifica. Godard parece ambíguo, entre um retrato justo das aspirações transformadoras da geração de 68 e uma sátira nada condescendente, a enxergar naqueles jovens meros pequeno-burgueses deslumbrados: somente flertam com a idéia de revolução, assumida mais como aspecto identitário e estetizante que práxis. Possivelmente, a leitura mais completa dessa peça da resistência da nouvelle vague seja contornar qualquer classificação definitiva. Em vez do: essa juventude é isso ou é aquilo, abrigar a generosidade do real com a conjunção e: isso e aquilo.
Quem participou das marchas das liberdades, em São Paulo, Rio de Janeiro e outras metrópoles brasileiras, talvez compreenda melhor ao que me refiro, quando falo em percepção essencialmente ambígua. Porque foram manifestações urbanas eminentemente elitizadas, brancas, tocadas pelos filhos da classe-média. Não admira o pequeno porte, uns poucos milhares de manifestantes, nem a relativa aversão explicitada por grupos da periferia. No Rio, a marcha reuniu várias pautas, das LGBTT e feministas à resistência cultural anti-Ana de Hollanda e contra a propriedade autoral. No entanto, predominou a pauta da legalização da maconha. Uma reivindicação aliás fundamental, na medida em que essa proibição constitui uma das causas principais da violência urbana, de um controle social racista e da corrupção eleitoral. Por deficiências da organização, o maior interessado na legalização — o morador pobre e negro da periferia — não se mobilizou. Já a marcha dos 50 mil pelos bombeiros, há uma semana, se por um lado contou com desconcertante contingente das periferias cariocas, por outro se concentrou quase inteiramente na agenda corporativa salarial e por melhores condições, bem como pela libertação dos presos políticos. Percebe-se, de cara, a distância das recentes marchas em relação ao movimento generalizado do 15-M da Espanha e, com ainda maior separação, das revoluções árabes.
Daí tantas críticas às recentes passeatas e àquelas agendadas para o futuro próximo. Não passariam de espasmos da elite, despolitizados e impotentes. Seriam tão pateticamente comoventes quanto formar um cordão humano para abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas em nome da “paz”, ou quanto o ativismo-de-dondoca do Cansei, em 2007, que chegou ao cúmulo de vaiar aviões decolando. Essas críticas têm a sua razão de ser. De fato, muitos crêem que fazer a sua parte se limite a indignar-se ante a corrupção, reclamar dos políticos, reciclar o lixo, velar pelo tom politicamente correto, consumir orgânicos, ir ao emprego de bicicleta e minutar o seu dia numa mídia social qualquer. Tenho a impressão que essa atitude “consciente” seja até mais comum do que aquela de quem não está nem aí, que fica na sua vidinha privada, sem opinião, e no fundo só quer se dar bem.
Na dita geração Z, hoje com até 20 anos, a ausência de revolta parece ter se agravado. Quantas vezes não fui pessimista, e reclamei que essa geração não se rebela à vera. Não se revolta sequer contra os pais; adolescentes com dentes alinhados e narizes corrigidos, bem alimentados, bem cuidados, bem tratados por famílias perfeitinhas, parecem grandes laranjas brilhosas, mas sem carne e sem veia aberta.
Ampliando o espectro, a geração nascida da metade dos anos 1970 em diante não experimentamos nenhuma grande decepção histórica. Não vivenciamos 1968 ou 1989. Essas pessoas com até 40 anos fomos ensinados a desconfiar de grandes narrativas (noutras palavras, aderir acriticamente a uma única narrativa, a do capitalismo hegemônico, que assim se naturaliza e se reproduz). A descrença é sistematicamente endossada pela repetitiva culpabilização das ideologias e do pensamento radical, — condenados inapelavelmente pelos regimes de horror do século 20.
Essas críticas também têm a sua pertinência. Com efeito, o formato antigo de agremiações centralizadas, coesas numa verdade e altamente disciplinadas não cabe mais, pois não há mais Palácio de Inverno a se tomar. Num capitalismo globalizado, difuso e sem centro, a exploração se imiscui nas frinchas do cotidiano. Qualquer resistência eficaz deve ir além de dogmáticas e coletivos duros, para mexer com a produção de subjetividade. Nesse sentido, a Praça Tahrir, o 15M e, em menor grau, as marchas brasileiras de 2011, exprimem um caminho bastante oportuno. Mais que isso, nesse contexto, a constituição de redes produtivas autônomas (como os Pontos de Cultura, os coletivos de rap e hip-hop, a blogosfera de esquerda, o Fora do Eixo etc), o código colaborativo do software livre e da wikipídia, e mesmo o singelo ato de baixar e compartilhar conteúdos livremente pela internet, — tudo isso se torna imediatamente político e resistente.
Mas não deslumbremos. Em tempos de super-fluxos e redes de redes, não percamos a lucidez. Nada substitui a ocupação de ruas e praças. Nada substitui “uma rebeliãozinha de vez em quando“, o que, para Thomas Jefferson, é constitutivo da democracia. As marchas têm o papel de resgatar o movimento de rua, que a internet jamais substituirá. As novas formas de organização qualificam a ocupação intensiva do espaço público, jamais a dispensando. A força das redes não fica apenas no online, mas na articulação nas texturas urbanas, na organização e funcionamento da metrópole. Na realidade, o capitalismo condiciona os espaços, ritmos e escoamentos da cidade numa matriz totalmente contingente, que colapsa rápido nessas horas de rebelião. Como por sinal se viu em Túnis, Tahrir, Pérola, Puerta del Sol e Praça Catalunha, — que nada significariam se as pessoas não tivessem saído de suas casas para as mil crônicas da rua. Tomar ruas e praças continua essencial em qualquer democracia e deveria ser o hábito por excelência do cidadão.
Por tudo isso, conquanto as críticas mencionadas sejam pertinentes e mesmo necessárias, é preciso reconhecer uma abertura potente nas marchas de 2011. Pessimismo na razão, otimismo na ação. Tem algo aí que pode crescer tanto em quantidade, quanto qualitativamente (na intensidade do desejo). Faltou a revolta da periferia, sim, mas não faltaram conexões para que isso ocorra e em breve. O modo de desdobrar o movimento tem uma dinâmica expansiva. Afinal, as pessoas não ficaram em casa: nem diante do computador, nem em coletivos autofágicos como em A chinesa. Foram pra rua, generosos e sem preconceitos, pra conhecer o diferente, pra aprender coisas novas, pra se enredar com o outro. O desafio, agora, penso eu, está em recompor a classe em movimento. Consiste em desatar o nó, que impede que todas as demandas se reúnam na sua diferença. Isto é, sem unificação numa única verdade, por uma única luta, por um único livro vermelho. É a mesma luta, diferentes.