Internet pública ou privada?

Os debates ocorridos no I Forum da Internet, organizado pelo CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil) foram muito ricos. Eu, pelo menos, aprendi bastante. Só não vivemos novamente o clima da I Confecom (Conferencia Nacional de Comunicação), porque desta vez a sociedade civil, em boa parte organizada, estava em número bem maior. A Academia também, na maioria das vezes, pensava mais próxima dos ativistas. Claro, o Forum não tinha poder de deliberação, então os líderes das organizações dos grandes empresários estavam sozinhos, sem a “cumplicidade” dos funcionários, que participaram “a serviço” da Confecom. Cumpriram seu papel, defendendo os pontos de interesse das empresas, às vezes com argumentos autocondenatórios, mas tiveram que aceitar consensos importantes.

Universalidade e Inclusão Digital compuseram a trilha mais concorrida (os participantes discutiram em seis eixos chamados de “trilhas”), talvez devido a sua temática encontrar mais eco nas pessoas do que o debate da tecnologia. Todos os ativistas por outro mundo possível, por mais justiça e liberdade, sabem da importância que a Internet tem para colocar o nosso pais, especialmente a juventude, na era global da informação e do conhecimento. Sabemos o valor de tanta diversidade e criatividade que tem nosso povo de muitas culturas, não podemos continuar sob a dominação da mesma elite conservadora, onde se destacam os coronéis da comunicação. Políticas públicas voltadas para além da inclusão, para a alfabetização digital; a cobertura em todo o Brasil, urbano e rural, e a preços baixos, são as principais reivindicações dos cidadãos que reconhecem a Internet como um direito humano fundamental. Talvez o ponto mais polêmico seja mesmo o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), onde as empresas de telecomunicações querem ser as protagonistas, as donas do negócio, colocando o debate apenas como um serviço, a ser comercializado com muito lucro.

Representantes dos empresários dizem “nada ter contra a Telebrás”, desde que seja apenas “mais um competidor no mercado, disputando em termos iguais”, mas querem que a empresa pública “leve o serviço para regiões onde não há interesse comercial”. Palavras de Alexander Castro, do Sinditelebrasil (Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal), que reivindica o regime privado para a banda larga, inclusive em nome dos “250 bilhões investidos pelo setor nos últimos 12 anos”. O diretor do sindicato das Teles defendeu que só a parceria público privada conseguirá reduzir a diferença entre as regiões com baixo IDH; eles pedem ainda redução do ICMS, e a utilização do espectro de radiofreqüência de 700mghz, “faixa fundamental para levar o acesso à banda larga para áreas remotas”. Além da utilização do FUST (Fundo de Universalização de Serviços de Telecomunicações), claro, “para que possamos desenvolver projetos, sobretudo de caráter social”.

A maioria da plenária defendeu o regime público para o PNBL, e não quer ser tratada como consumidor nesta questão, e sim como cidadão de direitos. “Só o regime público garante a universalização e a posse das redes, que são públicas”, disse Flavia Lefèvre, da Proteste (Associação de Consumidores); ela também defende a Telebrás, com o papel de indutora e gestora das redes necessárias para a prestação deste serviço. “Deve haver novas licitações com metas claras de universalização e para que possamos utilizar o FUST, aí sim em regime público, pois foi pago por nós”. A advogada criticou os contratos feitos pela Anatel, “sem inventários dos bens e acervo das concessionárias”. João Brant, do Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social), lembrou que o FUST tem que ser incluído na ordem do dia, pois existe um PL (Projeto de Lei) tramitando no Congresso, querendo utilizá-lo para investimento na infraestrutura das redes privadas, o que revela “um dissenso claro aqui”. “Não nos parece que a Telebrás deva ir só para áreas não rentáveis”, continuou o jornalista, “para as empresas defende-se a combinação de áreas rentáveis e não rentáveis!”

Os representantes do Ministério da Comunicação, nesta trilha, Artur Coimbra, diretor de banda larga, e o secretário Maximiliano Martinhão, só deram boas notícias, sobretudo para o pessoal da região norte. Segundo eles, houve replanejamento do PNBL com mudança de ramais para alcançar aquela região, e está havendo negociações com o governo da Guiana Francesa para facilitar a passagem da rede. Os executivos do MiniCom disseram que várias propostas apresentadas já estão em andamento, como as cidades digitais, no programa Brasil sem Miséria, alfabetização digital, formação nos Telecentros, diálogo constante entre os segmentos, acessibilidade. Na plenária final, o MiniCom respondeu a outras questões, como a referente ao Funttel – Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações, dizendo que não há concentração de seus recursos, como reclamavam. Na trilha em que estive no primeiro dia – Liberdade, Privacidade e Direitos Humanos – o representante do Governo era do Ministério da Justiça. Danilo Doneda falou em comércio eletrônico, defesa do consumidor, não falou em cidadania nem em direitos humanos uma vez sequer.
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Banda larga para o conhecimento

Educação e Internet têm uma ligação indissolúvel, como ficou claro em diversas manifestações e debates, e parece óbvio. Entretanto, nenhum representante do Governo era do Ministério da Educação (assim como essa área do Governo não faz parte do CGI.br), o que foi muito estranho e deixou no ar várias questões. As escolas conectadas e as não conectadas, a qualidade das conexões, a falta de liberdade dos alunos e a ignorância dos professores foram aspectos muito discutidos nesta trilha. Cobrou-se muito o não cumprimento da meta de incluir na banda larga até 2011 todas as escolas urbanas, e a exclusão das demais. Neste grupo havia a participação de representantes de quilombolas, ribeirinhos, feministas, ativistas do software livre, radialistas, educadores. “O acesso apenas não basta”, sentenciou Maria Helena Bonilla, da UFBA. “Utilizar a Internet para consumo de informação é subutilizar a tecnologia”, disse a educadora. “Necessitamos formação, precisamos pensar na autoria quando se pensa em educação. A perspectiva para articular educação e inclusão digital deve ser libertária, educação não é só o que se faz na sala de aula”.

Também nesta questão, Alex Castro defendeu os empresários, dizendo que “58 mil escolas são atendidas por nossas empresas, de acordo com o que o Ministério da Educação determinou”. Ao defender-se das críticas pela baixa qualidade dos serviços prestados pelas teles, o diretor do Sinditelebrasil confessou que “o que se reivindica é a velocidade máxima, e isso vai variar, no mínimo é 10%”, o que provocou reações da plenária.. Piorou ainda quando informou sobre dados oficiais de pesquisa, que teria detectado que a média da velocidade tem sido cumprida em 60%. Veridiana Alimonti, do IDEC, que coordenava a plenária, pediu licença para intervir e esclarecer sobre a metodologia do levantamento. “A pesquisa aconteceu nas cidades com a melhor rede, SP, BH e Rio, pois o objetivo era comparar os serviços de três empresas em locais bem servidos”. Sem comentários! Ora, parece óbvio também que o consumidor deve receber pelo que paga, mas as empresas explicam como se não fossem as responsáveis.

César Rômulo, do Sinditelebrasil, disse na plenária final que “o projeto de inclusão digital nas escolas nasceu dentro” da sua entidade, e afirmou estarem com banda larga em todas as escolas urbanas do país. “Usam a falta de banda larga para justificar a pouca qualidade de ensino”, afirmou. Pequenos provedores também estavam representados no debate pela Abrint – Associaçao Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações. “A inclusão digital nas escolas vive um descompasso sério”, disse Marcelo Couto. “Podemos ter um papel importante, principalmente nas pequenas cidades. Provedores locais geralmente nascem de pequenas empresas que prestam assistência e acabam até fazendo formação”. Ele defendeu que o segmento participe do PNBL, mas diz que é preciso evoluir muito na discussão do regime público, “muitas coisas estão em jogo, só o regime público não resolve”.

Da sociedade, Rodrigo Troian, da Associação de Software Livre do RS, acredita que ONGs e outras organizações na América Latina devem ser regulamentados como provedores. “Estamos esquecendo da sociedade civil como ativista”, disse o gaúcho, “devemos aproveitar os telecentros e começar redes, temos como construir, mas não temos autorização”. Rodrigo defende incentivos a projetos paralelos para formar agentes na comunidade, blogs comunitários, redes locais. “Temos capacidade, queremos agir, não nos interessa o lucro, apenas a inclusão digital”. O uso de software livre nas escolas foi defendido na trilha de Diversidade e Conteúdo, bem como a capacitação para a produção, a mudança na gestão da propriedade intelectual, não repetir o modelo tradicional em nova forma, mas sim explorar na educação o meio digital de modo adequado.

Provocações e Consensos

“O Brasil é um país antropofágico por natureza”, disse Rafael Rolim, da Casa Fora do Eixo, “não temos que beber em países xenófobos. Devemos garantir governabilidade sobre a fibra ótica, a banda larga não pode estar à mercê do mercado”. Daniele Silva, da Transparência Hacker, relatou a trilha paralela que ocorreu no primeiro andar, com algumas provocações sobre a necessidade de maior transparência na atuação do CGI.br. Reivindicação bastante exposta na trilha 2, Governança Democrática – abertura dos dados do Comitê Gestor na rede, que deve ser um multiplicador das informações sobre o que o Governo faz na Internet, “repensar e recriar o modelo de gestão do CGI.br, garantindo participação dos internautas diretamente; as regras de funcionamento devem ser levadas à consulta pública”.

A mudança da legislação brasileira, de modo a que o anonimato deixe de ser crime, foi defendido por várias pessoas. A Artigo 19 defende a liberdade de expressão, apoia o anonimato e listou diversas limitações que vem ocorrendo por meio de legislação restritiva, decisões judiciais desproporcionais . “Apesar de todos concordarem com a liberdade de expressão”, disse Laura Tresca, da organização internacional, “pessoas estão sendo mortas, ameaçadas pelo que publicam, muitas vezes por denunciar corrupção”. Isso, além de orientações corporativas que proíbem a livre utilização de redes sociais, cancelamento de domínios. Rita Freire, desta Ciranda da Comunicação, chamou a atenção para temas que parecem técnicos, mas são políticos, e defendeu a maior participação das mulheres. “O CGI precisa se abrir mais ao impacto da rede, de modo a refletir mais o debate, inclusive na questão da paridade de gênero”, disse ela. A editora da Ciranda também informou a plenária sobre o 2º Forum Mundial de Mídia Livre, que está sendo organizado para ocorrer paralelo a Rio+20, com uma etapa preparatória em Porto Alegre, em janeiro no FSM.

Com toda a disputa presente, alguns consensos importantes foram firmados, e comemorados por Sergio Amadeu, representante da sociedade civil no CGI.br, ativista do software livre e o maior propulsor deste I Forum da Internet no Brasil. Assim é que o Marco Civil da Internet (proposta de legislação, ora no Congresso, elaborado com participação da sociedade) foi considerado a base legal para a discussão. Entretanto a neutralidade na rede foi ponto polêmico. “Nenhuma lei sobre a Internet deve ser feita suprimindo liberdades individuais e a diversidade cultural”, foi outro consenso importante. Ninguém expressou posição contrária à necessidade de nova legislação do direito autoral, a que todas as regiões do Brasil tenham acesso à Internet, que é preciso incluir as pessoas com deficiência por meio de softwares de acessibilidade, e ao desenvolvimento de software nacional livre. A Anatel como reguladora da Internet também foi rechaçada por todos.

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