Torturadores da ditadura estão impunes

O aparato repressivo dos tempos da ditadura militar continua praticamente intacto no Brasil. Nenhum torturador foi punido, os arquivos dos porões do regime não foram abertos, o monitoramento de organizações e ativistas sociais continua e vários torturadores estão na ativa, desempenhando funções na administração pública ligadas à área da segurança pública.

No Ceará, o ex-delegado da Polícia Federal, José Armando da Costa, é o corregedor dos Órgãos de Segurança Pública do Estado. Ele é acusado de torturar presos políticos durante os anos de chumbo. Entre as atribuições do cargo que exerce atualmente está, por exemplo, a responsabilidade pela fiscalização dos casos de tortura praticados pelos policiais cearenses.

Procurado pela reportagem da Caros Amigos, Costa não quis comentar a acusação. Por intermédio de seu chefe de gabinete, o major Juarez, disse que só se manifestaria se a reportagem comparecesse pessoalmente à Corregedoria no Ceará.

O presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abraão, revela que o órgão denunciou Costa na Assembleia Legislativa do Ceará, ano passado, quando a Caravana da Anistia esteve no Estado. “Fizemos uma solicitação à Segurança Pública para que houvesse o seu desligamento do cargo.”

A Associação 64-68 de Anistia, entidade de defesa dos direitos humanos, também denunciou o ex-delegado da Polícia Federal pelo crime de tortura, mas ele continua no cargo. Mário Albuquerque, presidente da associação, conta que reencontrou Costa, em 2007, durante um evento na Federação das Indústrias do Ceará.

“Tomei um susto, mas quando a atividade terminou fui conversar com ele. Perguntei se ele tinha trabalhado na Polícia Federal do Ceará e ele desconversou: ‘Isso é coisa do passado’. Eu disse que fora preso político e ele empalideceu.” Em 1977, Albuquerque ficou pendurado em uma grade nas dependências da Polícia Federal do Ceará, das 9h às 16h, na posição de Cristo Redentor.

“Me tiraram dali e me levaram para ser interrogado por ele. O José Armando disse que se eu não falasse me mandava para a tortura novamente. Na época, o atual corregedor era delegado da Polícia Federal.

Vários presos políticos ainda têm receio de conversar sobre o assunto. “Levei 20 anos para conseguir falar sobre isso”, revela o engenheiro Júlio Lima, uma das vítimas de Costa. Preso em 1973, quando trabalhava no Banco do Nordeste, o ativista do PC do B foi torturado pessoalmente pelo atual corregedor dos Órgãos de Segurança Pública do Ceará.

“Eu estava de capuz, mas ouvia a voz dele. Até hoje, eu tenho essa voz na cabeça. O José Armando comandava a tortura. Era o comandante”, enfatiza. “Ele era tão brutal, que às vezes estava dando porrada na gente, parava o interrogatório e ligava para a esposa para dizer que estava fazendo um extra e que ia comer uma pizza.” Em 2000, Lima reencontrou seu torturador em um restaurante. “Me senti mal, mas mais tranquilo”, recorda.

As denúncias de ex-presos políticos, da associação de direitos humanos e da própria Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, contra Costa não sensibilizaram o Secretário da Segurança Pública do Ceará, Roberto Monteiro, que decidiu mantê-lo no cargo. “Pediram a sua exoneração, mas eu não exonerei. Não há nenhuma evidência de que seja um torturador da ditadura”, frisa.

O secretário elenca algumas razões para embasar sua decisão. “Nessa época ainda não existia a Lei da Tortura. Não existia o crime de tortura. Se eu colocasse alguém no pau de arara, responderia por lesão corporal.” Ele destaca também que a Lei de Anistia vigente indultou os ex-torturadores. “A anistia atingiu os dois lados, quem praticou sequestros, roubos, mortes e quem perseguiu esses esquerdistas.”

Para Monteiro, como a Lei de Tortura é de 1995, não dá para retroagir no tempo e condenar o ex-delegado pela prática do crime. “Não posso me valer dessa lei para um fato que ocorreu nos anos 70.” Além disso, ele destaca que “toda a pessoa tem direito ao devido processo legal, onde haja a devida defesa, direito ao contraditório e advogado”.

“A senhora já pensou em dar ao doutor Armando o benefício da dúvida”, questiona Monteiro à reportagem da Caros Amigos. “Eu não digo que o doutor Armando foi um torturador, no máximo foi conivente com os fatos”, conclui o secretário de Segurança Pública.

Impunidade
A não punição dos torturadores é inaceitável para o presidente Paulo Abraão. “Nós lidamos na Comissão de Anistia com os relatos dos crimes que foram cometidos. O sentimento é de um acúmulo de injustiça histórica.” Desde 2001, a Comissão já apreciou 55 mil pedidos de reparação às vítimas da ditadura militar, 30 mil foram deferidos.

A sensação de impunidade e desdém em relação aos direitos humanos também pode ser identificada no Estado de São Paulo, onde ex-torturadores também atuam diretamente na área da segurança pública.

O torturador da Operação Bandeirantes (Oban) e do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOICodi) Aparecido Laertes Calandra, acaba de ter a aposentadoria publicada no Diário Oficial do dia 13 de março. Antes disso, em 1 de janeiro de 2010, foi promovido a delegado de 1ª classe.

O capitão Ubirajara, como era conhecido nos porões do regime, ganhou projeção quando o governador tucano Geraldo Alckmin o nomeou, em 2003, para a chefia do Departamento de Inteligência da Polícia Civil paulista, órgão responsável, por exemplo, pelo serviço de escutas telefônicas.

A contragosto Alckmin teve de recuar na decisão por pressão das entidades de direitos
humanos e de ex-presos políticos torturados pelo policial. Antes de revogar a nomeação,
Alckmin chegou a declarar, no entanto, que não via nada que desabonasse a permanência de Calandra no cargo. O ex-torturador do DOI-Codi se aposentou na Unidade de Inteligência Policial do Departamento de Administração e Planejamento da Polícia Civil de São Paulo.

O deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP) é uma de suas vítimas. Ele ficou preso por 90 dias no DOI-Codi paulista. “O Calandra era um dos torturadores mais ativos. Me colocou no pau de arara, deu choques elétricos, chutes… Era um cara super-agressivo, terrível, terrível. Era chefe de equipe.”

Diogo afirma ter receio da permanência de ex-torturadores em órgãos de segurança pública. “Vejo com muito medo. Esses caras são perigosos. Minha tese é de que o aparato repressivo não foi desmontado, está intacto. A tortura continua sendo um método consagrado para a obtenção de informações.”

Ele também passou por um constrangimento na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 2007, quando exibiu o filme do cineasta Sérgio Rezende, Lamarca, que retrata a trajetória do comandante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e ex-capitão
do exército Carlos Lamarca. Segundo o deputado, vários militares da “velha guarda” compareceram ao evento e fizeram provocações.

“Tinha um grupo de coronéis que nos ameaçou, foi barra pesada. Perguntavam por que estávamos exibindo o filme ‘sobre aquele canalha traidor’. Criticaram as pessoas do PT que tinham sido presas, chamaram de terroristas…”

Ariston Lucena, filho do ativista da VPR, Antônio Raymundo de Lucena, estava na mesa de debates do evento e também sofreu provocações da plateia. “Fiquei espantado com o tom provocativo. Era gente ligada ao esquema da repressão. Me senti intimidado.” Ariston ficou preso por nove anos. Assim como o pai, ele também pertencia ao grupo político de Lamarca. “A ação de Quitaúna (expropriação das armas do Exército feita pelo capitão) foi planejada na casa dos meus pais”, revela.

Repressão
Carlos Alberto Augusto, o Carlinhos Metralha, é delegado plantonista do Departamento de Investigações do Crime Organizado do Deic. Nos anos 70, integrou a equipe do delegado-torturador Sérgio Paranhos Fleury, no Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

Hoje, é um dos protetores do Cabo Anselmo, militar que agia infiltrado em organizações de esquerda durante a ditadura. Anselmo entregou a própria companheira, Soledad Barret, para a morte. A paraguaia estava grávida dele quando foi assassinada junto com vários militantes da VPR, em Recife, pelas forças da repressão, após terem sidos delatados por Anselmo.

Foi de Metralha também o convite espalhado pela internet, em maio do ano passado, para o comparecimento à missa de 30 anos da morte de Fleury, que aconteceu na zona oeste da capital paulista.

Mais discreto, mas não menos truculento, Dirceu Gravina ou JC, como era conhecido nos porões em alusão a Jesus Cristo (usava cabelos compridos na época), acabou descoberto depois de ter aparecido na mídia em função de um caso que sua delegacia estava investigando. Hoje, está lotado na sede do Departamento de Polícia do interior 8, em Presidente Prudente, região oeste do Estado. O delegado também foi promovido em 01 de janeiro de 2010.

Calandra, Gravina e Augusto foram procurados pela reportagem da Caros Amigos, por meio da assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Os dois primeiros não quiseram se pronunciar, Augusto não foi localizado, porque estava de férias.

O Secretário da Segurança de São Paulo, Antonio Ferreira Pinto, também não se pronunciou sobre os três casos. A assessoria de imprensa da Secretaria informou que ele não falaria porque os policiais não ocupam cargos de chefia e a Lei de Anistia permite que eles permaneçam nas funções. A Delegacia Geral de Polícia de São Paulo, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que nenhum procedimento administrativo disciplinar culminou na aplicação para a pena de demissão dos delegados.

Para o jurista Hélio Bicudo, a Lei de Anistia tem sido interpretada de maneira oportunista para abranger vítimas e algozes. “Basta uma leitura com alguma atenção para perceber que não é uma lei de duas mãos. A lei abrange apenas os adversários do regime, que foram punidos, cumpriram penas de vários anos. Agora é a vez dos torturadores.”

Segundo Bicudo, a tortura é crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível. “Infelizmente, nossos tribunais têm falhado, os torturadores não cometeram crimes políticos. Dizem que a lei buscou a paz. Mas a paz sem justiça não existe. Enquanto não se fizer justiça, esse clamor vai continuar. Esse clamor passa pela punição dos torturadores”, frisa o jurista.

O procurador da República, Marlon Weichert, também considera inadmissível que torturadores exerçam funções públicas. O Ministério Público Federal de São Paulo move ação contra os agentes envolvidos na morte do operário Manoel Fiel Filho, assassinado sob tortura, em 1976, no DOI-Codi paulista.

Infiltração
O serviço de infiltração de agentes policiais em movimentos sociais continua a todo vapor. A prática é reconhecida, inclusive, pelo chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Wilson Roberto Trezza. Ele afirmou em outubro do ano passado, que o MST é monitorado por agentes do órgão. A Abin é a herdeira do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de monitoramento da ditadura militar. Os arapongas que espionavam as lideranças consideradas subversivas pelo regime verde-oliva continuam abrigados na estrutura da nova agência de inteligência.

Recentemente a polícia prendeu três ativistas do MST em Santa Catarina em função desse tipo de infiltração. A ação militar foi preventiva, nenhuma propriedade havia sido ocupada, mas com base nos dados repassados pelos agentes prenderam esses militantes.

“O aparato de inteligência ainda é da época da ditadura militar, treinado pelos americanos que vêem os movimentos sociais como inimigos internos”, critica o dirigente nacional do MST, João Pedro Stedile.

Não é só o MST que é vigiado. A prática da espionagem política permeia as forças policiais, apesar de a ditadura militar ter terminado há mais de um quarto de século. O serviço reservado das polícias continua atuando para identificar as lideranças de movimentos sociais. Os P2, como são conhecidos os infiltrados da PM, acompanham até manifestações acadêmicas, que reivindicam a queda de reitor. Foi o que aconteceu na Fundação Santo André, faculdade do ABC paulista, em outubro de 2007.

“Além da infiltração de dois espiões no nosso movimento que queria derrubar o reitor Odair Bermelho, também sofremos a invasão da Tropa de Choque da PM duas vezes em um mês. Isso configura que o aparato repressivo herdado da ditadura militar está preservado”, afirma a professora e coordenadora do curso de Ciências Sociais da Fundação, Lívia Cotrim.

O sindicato dos Bancários de São Paulo também conhece de perto a prática de infiltração. Segundo o presidente da entidade, Luiz Cláudio Marcolino, os infiltrados são vistos em períodos de greve. “Geralmente andam em dupla, ficam na rua próximos às agências. Na Quadra não entram, porque controlamos o acesso exigindo apresentação do crachá.”

O Sindicato também teve acesso a uma informação inédita. O texto de um e-mail enviado pela Febraban (Federação Brasileira dos Bancos) para seus dirigentes, convidava para uma reunião com a PM no dia 11 de setembro de 2009, na sede do Comando do Policiamento da Capital, localizado na rua Ribeiro de Lima, 140, na Luz. Na pauta, o planejamento de ações conjuntas diante dos movimentos grevistas em andamento no mês. Detalhe: o Sindicato dos Bancários ainda não havia deflagrado greve e estava na mesa de negociação com os dirigentes da Fenaban, o braço da Febraban para a negociação de acordos.

A assessoria de imprensa da PM confirmou que a reunião ocorreu. “Foi recebida da mesma forma que são recebidos diversos segmentos da sociedade”. A PM também confirmou que a Febraban solicitou um canal de comunicação especial, mas que a instituição negou.

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