Foto: Brunna Rosa
Em Porto Alegre, no mesmo palco em que pouco antes participara do seminário que avalia os dez primeiros anos do Fórum Social Mundial, o sociólogo venezuelano Edgardo Lander concedeu uma entrevista sobre a crise em seu país. Ao ouvir a pergunta, o corpo que sustenta o rosto tenso, de testa larga e cabelos grisalhos, inquieta-se. Lander se remexe na poltrona, para ficar ereto; emite um suspiro e começa a descrever, com detalhes e nuances, o que quase nunca aparece na mídia. Nem a oficial, que vê em Chávez um demônio a ser exorcizado, nem a de certa esquerda, que quase sempre trata o presidente como anjo redentor.
“O preocesso político venezuelano continua marcado por uma profunda esquizofrenia”, pensa este professor da Universidade Central da Venezuela e membro do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso). “A mobilização social desencadeada desde a posse de Chávez despertou da apatia as maiorias. Elas sentem-se donas do país. Milhões de pessoas, antes submissas, querem opinar. E o fazem, nos Conselhos Comunais, Comitês de Água, ou espaços abertos para debater as políticas de Saúde e Educação.
“No entanto, a mobilização foi desencadeada pelo Estado e dele depende fortemente”, continua Lander, que também é um dos articuladores assíduos e inspirados dos Fóruns Sociais das Américas. Ele dá exemplos: “Os Conselhos Comunais, pedra de toque do novo processo político, costumavam encarar a sério todas as propostas de debate lançadas pelo presidente. Mas que fazer se, em meio a uma polêmica intensa, os integrantes de um Conselho ligam a tevê e vêem o presidente anunciar, garboso, que ya decidió a questão em que estavam mergulhados? Não é natural que se enxerguem como meros figurantes?”, pergunta o sociólogo.
Segundo Lander, as várias crises que se entrecruzam na Venezuela de hoje estão relacionadas, para bem e para mal, com o caráter particular do chavismo. Ele apela à iniciativa dos de baixo para se contrapor ao conservadorismo das elites. Mas não quis ou não foi capaz, ao menos por enquanto, de libertar as maiorias também de seu grande líder… Por isso, produz ineficiência, acomodação e personalismo.
A crise energética, explica Lander, é um dos sintomas. Ela está se tornando a cada dia mais severa, não tem solução a curto prazo e provocará um apagão que poderá desorganizar a economia. As decisões serão tomadas em breve. Fala-se em cortes de energia que durarão quatro horas por dia, cinco vezes por semana – atingindo tando as residências quanto todo o setor produtivo.
Há uma causa natural: uma seca prolongada, devastadora num país em que 70% da energia vem de matriz hidrelétrica. A barragem da usina de Guri, responsável por mais da metade da eletricidade gerada no país, está perdendo 11 centímetros por dia. No início da semana, Chávez lançou um apelo de emergência a Lula, pedindo-lhe que especialistas brasileiros de alto nível sejam enviados à Venezuela, para tentar encontrar saídas.
Mas num país com fontes hídricas abundantes, não se pode culpar apenas o clima. Assim como no Brasil da virada do século, as raízes do apagão estão também em ineficiência, incapacidade de planejamento, indigência administrativa. “Um dos desdobramentos da cultura personalista é julgar que, para dirigir bem uma empresa ou um setor da economia, basta compromisso político”, diz Lander.
No terreno econômico, o segundo problema crucial da Venezuela é o risco de inflação e desabastecimento, provocados por uma alta até agora incontida do dólar. Em 8 de janeiro, a chamada “segunda-feira negra”, o governo foi obrigado a abandonar uma política de câmbio fixo que mantinha, desde 2003, o dólar quotado a 2,15 bolívares – a moeda local.
A taxa era surreal. No mercado negro, o dinheiro norte-americano valia o dobro, e um volume cada vez maior de transações se fazia fora dos canais legais. A desvalorização foi de 100%: dólar a 4,30 bolívares. Abriu-se exceção para uma pequena cesta de produtos de primeira necessidade (como medicamentos) e compras governamentais, que se beneficiarão de um dólar a 2,60 bolívares. Numa economia que importa quase tudo, a tendência é inflação em disparada. A classe média foi as compras, provocando desabastecimento.
Para Lander, o chavismo repetiu os governos anteriores, ao não enfrentar a enorme dependência do país em relação ao petróleo. Durante os anos em que o combustível disparou no mercado mundial, entraram tantos dólares que a Venezuela deu-se ao luxo de trazer tudo de fora. Mas como enfrentar, agora, um cenário em que se combinam racionamento de energia, desorganização econômica e inflação acelerada?
Lander vê o fulcro da crise venezuelana deslocado para as eleições parlamentares, que ocorrerão em setembro. A oposição, diz ele, já não comete os erros infantis em que incorria no passado, quando chegou a abandonar um pleito e ficar fora do Parlamento. Agora, pensa a médio e longo prazo. Não tentará transformar os protestos das últimas semanas numa tentativa de golpe, como em 2003. Estará unida e articulada, nos próximos meses. A depender da desorganização econômica, não se exclui a possibilidade de que seja maioria no Congresso. Nesse caso, o presidente estaria privado do controle quase monopólico do poder de Estado, no momento essencial para seu projeto político.
Como o chavismo reagirá, se esta possibilidade se concretizar? Para Lander, aqui estão a incógnita e, num certo sentido, a esperança. De um lado, imagina ele, haverá setores dispostos a desconhecer o resultado das urnas e a dizer que o “processo revolucionário” precisa avançar, a qualquer custo. De outro, e desde agora, há o caminho de uma retificação. Não significaria abrir mão de todos os avanços alcançados. Implicaria, porém, um poder menos personalista, mais aberto às divergências, à necessidade de alianças sociais e políticas. Na melhor hipótese, o chavismo reconheceria que, para continuar apoiando-se nas maiorias, precisa reconhecer que devem ser de fato autônomas.
O chamado “processo bolivariano” será capaz deste enorme passo adiante? Para Lander, desta grande questão, ainda em aberto, depende o futuro imediato da Venezuela.