Na era da maturidade?

Conhecido pela tendência a reinventar a si próprio e a abandonar mesmo as fórmulas que parecem mais bem-sucedidas, o Fórum Social Mundial (FSM) prepara-se para uma nova experiência, em 2010. Será policêntrico, assim como em 2006 (no Mali, Venezuela e Paquistão) e 2008 (uma jornada de ação global, na mesma data de encerramento do Fórum de Davos). Mas vai deixar, além disso, de se concentrar num único período – para se estender no tempo e também no espaço.

A inovação começará mais uma vez pelo Brasil. Entre 25 e 31 de janeiro, a Grande Porto Alegre e Salvador receberão os dois primeiros “capítulos” do FSM-2010 – com características distintas e complementares, como se verá. Ao longo de todo ano, porém, haverá pelo menos outros 29 eventos, tanto em países do chamado sul do planeta (América Latina, África, mundo árabe e Ásia) quanto nos Estados Unidos e Europa (veja a relação completa e as características dos capítulos já confirmados).

Isoladamente, nenhuma das atividades será comparável – em número de participantes ou capacidade de repercutir na mídia – aos Fóruns centralizados, que já ocorreram em Porto Alegre (2001 a 2003; 2005), Mumbai (2004), Nairóbi (2007) ou Belém (2009). Um dos motivos para a mudança é cronológico. Em 2005, o Conselho Internacional do FSM decidiu que os encontros seriam concentrados numa única cidade apenas a cada dois anos.

Mas há, talvez, uma segunda razão, não assumida. Às vésperas de completar sua primeira década, o Fórum Social Mundial parece cada vez mais distante de uma Internacional de estilo leninista – e mais sintonizado com um pós-capitalismo que se constrói difundindo valores e lógicas contra-hegemônicas. Não se trata, portanto, de tramar a grande assembleia redentora, mas de espalhar por toda a parte os vírus de relações sociais mais avançadas – que, supostamente, acabarão contagiando as sociedades e minando as resistências do sistema.

O capítulo Porto Alegre

Os quase trinta capítulos do FSM-2010 são um sinal desta tendência de multiplicar novidades anti-sistêmicas. O evento no Rio Grande do Sul, por exemplo, celebrará a possibilidade de reverter as hierarquias entre “centro” e “periferia”, e de construir metrópoles humanizadas. Ao contrário do que ocorreu nas edições anteriores, ele não estará concentrado em Porto Alegre. Vai se espalhar por mais cinco cidades da região metropolitana (ver box). Para os deslocamentos entre elas, os participantes serão convidados a utilizar os trens de subúrbio, cujas linhas estão se expandindo em muitas cidades brasileiras, depois de décadas de retrocesso ou estagnação.

O Acampamento Intercontinental da Juventude (AIJ), por exemplo, ficará em Lomba Grande, um distrito de Novo Hamburgo situado a pouco mais de uma hora da capital, em transporte coletivo. Alexandre Bellò, um dos facilitadores da iniciativa, espera cerca de sete mil participantes e explica os motivos da escolha. “É um local que resiste há décadas à industrialização predatória e alienada. Lá, pratica-se de modo sistemático a reciclagem, o uso consciente da água (100% proveniente de poços artesianos), o turismo sustentável”. O convívio de milhares de jovens em Lomba Grande buscará aprofundar tais práticas. “O AIJ quer estimular as pessoas para que sejam agentes transformadores dos espaços que utilizam. Todos os participantes administram, decidem e executam decisões em um nível de igualdade, sem que haja uma hierarquização do processo. A autogestão parte do princípio de que todos os indivíduos são aptos ao debate de assuntos públicos e a desenvolver soluções para os problemas que dificultem o convívio”, propõe um dos documentos publicados no site da iniciativa (www.acampamentofsm.org.br). Num outro texto, argumenta-se: “o compromisso é com a criação e difusão de alternativas que se contrapõem à lógica capitalista, através da inclusão de indivíduos e garantia de direitos”.

Embora de modo menos explícito, esta aposta na superação das sociedades de mercado por meio de mudanças de valores está presente também na atividade mais reflexiva em pauta no capítulo Grande Porto Alegre. Trata-se do seminário “Dez anos depois: desafios e propostas para outro mundo possível”, que acontecerá entre 25 e 29 de janeiro, pelas manhãs. Reunirá cerca de quatro mil pessoas, que dialogarão com ativistas e intelectuais associados e com o FSM desde o seu início. Já confirmaram presença, entre outros, Aníbal Quijano, Eduardo Galeano, Gilmar Mauro (MST), Immanuel Wallerstein, Ladislau Dowbor, Paul Singer e Susan George.

O seminário é organizado pelo Grupo de Reflexão e Apoio ao Processo FSM (GRAP), um coletivo que reúne, entre outros, parte dos brasileiros que lançaram, em 2000, a ideia do FSM. Embora sustente que o Fórum “teve papel central em quebrar o ‘pensamento único’ e alterar ‘a paisagem política do planeta'”, o documento que convoca a atividade (disponível em breve, na internet), propõe “uma reflexão mais sistemática sobre o que fomos capazes de realizar até aqui, nossos erros e acertos”. O objetivo é “examinar os novos desafios com os quais nos confrontamos e projetar possíveis caminhos futuros que o FSM deverá percorrer, na desafiadora conjuntura global que se abre”.

O vínculo, ao menos parcial, do seminário com a nova cultura política aparece quando se analisa mais detalhadamente a estrutura do evento. O primeiro dia é dedicado a um “balanço de 10 anos” do FSM e o segundo, ao exame da conjuntura, em quatro aspectos: ambiental, econômico, político e social. A partir de então, entram em pauta os “elementos da nova agenda”. Três deles caberiam também num encontro tradicional de esquerda: “Organização do Estado e poder político”, “Novo ordenamento mundial” e “Como construir hegemonia política”. Nos demais, transparece a pauta de transformações que emergiu com força neste início de século: “Bens Comuns”, “Sustentabilidade”, “Economia e gratuidade”, “Direitos e responsabilidades coletivas” e “Bem-Viver”.

O FSM em Salvador

A partir de 29 de janeiro, abre-se o “capítulo Salvador” do FSM. Coincidirá com o encerramento do Fórum Econômico Mundial, que reúne em Davos (Suíça) os antigos “donos do mundo”. Seus organizadores chamam-no de FSM Temático, pois o veem como fio condutor do conjunto das atividades, Tolerância, Diversidade e Crise Civilizatória. Trará ao menos três novidades relevantes. A primeira é a própria chegada do grande encontro das alternativas a Salvador. Lá, dinâmicas associadas ao FSM, como o horizontalismo, o culto à diversidade e o estímulo à autonomia entrarão em contato com particularidades típicas da Bahia – por exemplo, a valorização de negritude e o papel desempenhado pela cultura no processo de afirmação das maiorias.

Esta sinergia tem surgido com vigor nas reuniões preparatórias do evento. Para construí-lo, formou-se um Comitê Organizador extremamente plural (algo raro, num Estado onde as tensões internas à esquerda e aos movimentos sociais são acirradas). Tal coletivo, que realiza reuniões semanais de trabalho com até setenta participantes (e plenárias quinzenais ainda mais numerosas), tem sido um laboratório onde se constroem dezenas de oficinas e seminários autoorganizados, muitos deles envolvendo diversos setores sociais, que pela primeira vez atuam em colaboração (veja algumas destas atividades no box).

A segunda surpresa de Salvador é a possibilidade (a ser confirmada nas próximas semanas) de um encontro inédito entre a sociedade civil planetária e o poder. A base para tanto é a conhecida emergência, na América Latina, de governos que rompem em distintos graus com o neoliberalismo e buscam diálogo com os movimentos sociais. Os organizadores do evento baiano querem abrir, com tais governantes, debates mais avançados que os estabelecidos em Fóruns anteriores (Porto Alegre-2003 e 2005; Caracas-2006; Belém-2009). Ao contrário do que ocorreu nas ocasiões anteriores, quando a fórmula adotada foi muito próxima à dos comícios, a ideia é montar uma Mesa de Diálogos e Controvérsias. Não terá formato de palanque, mas de diálogo entre iguais.

Quase quinze chefes de Estado estão sendo convidados: quase todos os da América do Sul (à exceção do colombiano Álvaro Uribe e do peruano Alán Garcia, por motivos óbvios), mais quatro africanos (os presidentes da África do Sul, Angola, Benin e Moçambique). Planeja-se assegurar a presença de um número expressivo de integrantes do Conselho Internacional do FSM. Se o projeto for bem-sucedido, o efeito simbólico será extraordinário. Desenrolada nos mesmos dias de Davos, a iniciativa baiana significará um contraponto inédito ao encontro que era, até o início do século, o grande evento global de reafirmação e difusão do “pensamento único”.

O toque final estará na cultura. Salvador pretende fazer a ponte para Dacar, a capital africana (Senegal) onde ocorrerá, em janeiro de 2011, um novo FSM centralizado. Um conjunto de atividades artísticas celebrará a ponte entre a capital baiana e a Ilha de Gorée, situada no litoral senegalês. Entre os séculos 16 e 18, num momento-chave para a construção do capitalismo e da modernidade, estas localidades desempenharam um papel tenebroso. Foram, respectivamente, o principal porto de entrada e de saída, no comércio de seres humanos escravizados. O capítulo Salvador sinalizará, em contrapartida, a possibilidade de um novo enlace. No instante em que velhos dogmas ideológicos e geopolíticos parecem abalados, será o sinal de que, a partir de uma nova tradição política e das relações Sul-Sul é cada vez mais possível construir um mundo novo.

Entre a Grande Porto Alegre e Salvador Para preparar a viagem: o que haverá de mais instigante nos dois capítulos brasileiros do FSM-2010

PORTO ALEGRE

Acampamento Intercontinental da Juventude
Novo Hamburgo-RS (distrito de Lomba Grande) – 22 a 28 de janeiro

Atividades autoorganizadas, distribuídas em cinco espaços temáticos. Três tendas (Ambiental, Mercedes Sosa-Saúde e Reforma Urbana. Feira Orgânica, Laboratório de Conhecimentos Livres, Cidade Hip-hop, Aldeia da Paz. Lançamento de campanhas e de atos simbólicos, como o Almanaque FSM.
http://www.acampamentofsm.org.br

Seminário 10 anos depois
Porto Alegre, 25 a 29 de janeiro

Veja informações no corpo da matéria principal. Em breve, programação completa na internet. Presenças confirmadas de David Harvey, Gilmar Mauro, Ladislau Dowbor, Pat Mooney, Patrick Viveret, Patrick Bond, Paul Singer, Samir Amin, Silke Helfrich, Susan George, Walden Bello e de integrantes do Conselho Internacional do FSM – entre os quais Amit Sen Gupta (Índia), Blanca Chancoso (Equador), Gina Vargas (Peru), Gustave Massiah (França), Meena Menon (Índia), Nandita Shah (Índia), Nicola Bullard (Austrália), Prabir Purkayastha (Índia), Rafaela Bollini (Itália), Roberto Espinoza (Peru).

I Feira e I Fórum Mundial de Economia Solidária
Santa Maria-RS (22 a 24 de janeiro); Canoas-RS (25 a 28 de janeiro)

Presença de dezenas de expositores, de 17 Estados brasileiros e de países do Mercosul
http://www.fbes.org.br

Encontros do Mundo do Trabalho
Porto Alegre, 25 a 29 de janeiro

Organizados em conjunto pelas sete centrais sindicais brasileiras, debaterão temas como a luta pela redução da jornada de trabalho e a retomada dos movimentos grevistas. A programação será definida nas próximas semanas.

Seminário do Conselho de Educação de Adultos da América Latina (CEAAL)
Sapiranga-RS (23 e 24 de janeiro)

Com educadores de 21 países, entre eles Fernando Cardenal (Nicarágua) e Leonardo Boff.

Seminário Internacional de Metrópoles Solidárias, Sustentáveis e Democráticas
Canoas-RS (26 a 28 de janeiro)

Promovido pelo Fórum de Autoridades Locais (FAL), contará com a presença de Boaventura dos Santos Souza, e de prefeitos de dezenas de cidades da América Latina e Europa. Prepara o II Fórum Mundial de Autoridades Locais das Periferias, que ocorrerá em maio, em Getape (Espanha).

Encontro do Conselho Nacional de Entidades Negras
Canoas-RS, a confirmar

IV Fórum Mundial da Teologia da Libertação Canoas-RS, a confirmar

SALVADOR

Crise Civilizatória
Salvador, 29 a 31 de janeiro

Dezenas de atividades, inscritas por organizações da Bahia e de outras partes do Brasil e do mundo. Oficinas, seminários, mesas redondas, rodas de conversa. Entre muitas outras, estão previstas:

– Mesa Redonda: o governo Obama e a situação de Cuba.
Bloqueio Econômico, Base de Guantánamo e cinco presos políticos.

– Mesa Redonda: A luta pelos fundos de moradia – um balanço

– Mesa Redonda: Pré-Sal, novo marco regulatório e desenvolvimento nacional

– Atividades múltiplas: Trânsito e vida
Seminários, mesas redondas e aulas públicas, em distintas partes de Salvador, visando provocar, entre a população, a consciência sobre a desumanização provocada pelo automóvel e a busca de alternativas.

– Fórum Diversidade para Somar
Entidades negras organizam, em conjunto, debates sobre Racismo e institucionalidade; Ações afirmativas no Brasil; Estratégias de enfrentamento do extermínio da população negra; Movimento antirracista, cotas e permanência nas universidades; Mídia e racismo

– Atividades múltiplas: Diálogo e Diversidade LGTB / Brasil
Contra as fobias e a intolerância, a lógica igualitária

– Aldeia dos Povos Originários
Incluindo encontros entre nações originais da América Latina, espaço para rituais e apresentações culturais, medicina indígena de xamãs e pajés, feira de trocas originárias, espaço de artesanato.

– Fórum Internacional Crise e Oportunidade
Organizado por Ladislau Dowbor, procura encontrar alternativas à crise econômica que incorporem uma nova relação entre o ser humano e a natureza, e o resgate das dívidas sociais. Presenças confirmadas de Susan George, Lester Brown, Paul Singer, Márcio Pochmann e outros.

– Diálogos e Controvérsias: Sociedade Civil e Chefes de Estado
Salvador, 29 a 31 de janeiro

Em contraposição ao Fórum de Davos, um encontro entre a sociedade civil planetária e chefes de governo de mais de quinze países, interessados em dialogar com ela. Ver maiores informações no texto principal.

– Fórum Mundial de Diversidade Cultural
Salvador, 29 a 31 de janeiro

Encontros, seminários e atividades artísticas com ênfase no que se chama de “cultura das periferias” (em Salvador, “cultura de raiz”). Celebração da livre difusão de obras culturais, da criatividade e colaboração entre os artistas do Sul do planeta.

Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum de novembro. Nas bancas.