Não são poucos os povos no mundo que buscam o reconhecimento de seus direitos e o fim da opressão de potências estrangeiras. A mais conhecida e midiatizada das lutas pela autodeterminação talvez seja a dos palestinos, espalhados por campos de refugiados em países como Líbano e Jordânia, ou vivendo em territórios sob ocupação de Israel como a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Mas dezenas de diferentes grupos de populações e etnias como os curdos (Iraque, Irã, Turquia e Síria), ciganos (especialmente na Europa Oriental), Tibetanos (China e Índia) e caxemires (Caxemira ocupada por Índia, Paquistão e China) etc seguem buscando se não a independência completa, pelo menos a possibilidade de sobrevivência de sua língua, cultura, tradições e identidade.
Um dos mais ameaçados de aniquilação total, que está próxima de acontecer, é o povo Raizal, do arquipélago de San Andrés, Santa Catalina e Providência, situado a 180 km da costa da Nicarágua, a 400 km das praias da Jamaica e 480 km da América do Sul. Há mais de 50 anos a Colômbia promove um processo sistemático de colonização, aculturação e militarização, que põe em grande risco não somente a população nativa das ilhas como está destruindo rapidamente o próprio ecossistema com a superpopulação e a hiperexploração hoteleira. Mas essa notícia você não vai encontrar nos grandes jornais e redes de televisão.
O povo hoje conhecido como Raizal tem sua origem na chegada do navio britânico Sea Flower, em 1624, que trouxe colonizadores puritanos ingleses e negros escravos da Jamaica para trabalharem em fazendas de cana de açúcar e madeira para construção de barcos. Com o passar dos anos, houve também alguma migração de ameríndios e os raizales desenvolveram toda uma cultura própria, de credo majoritariamente protestante e com um dialeto crioulo de raiz inglesa.
O território, entretanto, sempre foi alvo de disputas, primeiro entre espanhois e ingleses, depois entre centroamericanos e sulamericanos (com algumas partes reclamadas por norteamericanos) e atualmente entre Nicarágua e Colômbia. “Por algum tempo fomos o primeiro país independente do continente americano, depois de libertados em 1818 pelo corsário francês Louis-Michel Aury”, conta Dulph Mitchell, secretário-geral do Movimento pela Autodeterminação Étnico-Nativa do Arquipélago (AMEN-SD, na sigla em inglês). “Em 1822 aceitamos voluntariamente nos unir, como província autônoma, à então Gran Colômbia, mas depois da morte do ditador Simon Bolívar e da desintegração do país ficamos num ‘limbo’ jurídico e nos autogovernando até 1912, quando a nova Colômbia, por meio da Lei 52, nos declara uma ‘intendência’ sem qualquer consulta a nossos líderes”.
A promulgação da Lei 52 é o começo do fim para os raizales. Em seu artigo 13, institui a Igreja Católica como responsável pelo sistema educacional do arquipélago forçando, portanto, a adoção da língua espanhola e imprimindo uma disputa religiosa que até então não existia. No artigo 14 da lei, vigente até hoje, o governo colombiano garante o transporte gratuito em navios para qualquer família do continente com mais de quatro membros que queira viver nas ilhas. “Trata-se de uma política intencional e deliberada de colonização e descaracterização da população original”, alega Raymond Howard, presidente da AMEN-SD. “Ainda assim, até 1950 éramos 95% da população e continuávamos vivendo como sempre, basicamente da pesca e da agricultura de subsistência”.
O segundo grande golpe no povo raizal aconteceu em 1953, com a abertura do Porto Livre de San Andrés, que aumentou o fluxo de mercadorias e pessoas no arquipélago e transformou sua principal ilha em um destino turístico cobiçado, a ser explorado principalmente por comerciantes colombianos de origem síria e libanesa que abriram os primeiros grandes empreendimentos hoteleiros. “Na década de 1950, até mesmo o nosso cemitério tradicional foi destruído, com as tumbas arrancadas para dar lugar a um campo de esportes para os turistas”, afirma Mitchell. “Desde então, a colonização foi tão intensa que hoje somos minoria, com cerca de 30% das mais de 100 mil pessoas que superpopulam San Andrés, esgotando os recursos naturais. Mas representamos apenas 10% da força de trabalho”, diz Howard. “Por causa do preconceito e do racismo que sofremos, os raizales não conseguem empregos decentes e muitos estão emigrando para a Colômbia e a Nicarágua, enquanto outros se submetem a trabalhar nos barcos de turismo, já que até a pesca tradicional foi substituída para indústria extrativista. Isso está destruindo completamente os núcleos familiares e gerando todo tipo de problemas.”
Desemprego e tráfico
Sem opções de emprego, muitos dos raizales, conhecidos no Caribe por suas habilidades em navegação, aceitam transportar pequenas quantidades de drogas entre as ilhas. “Que eu saiba, a maioria são runners (que poderíamos traduzir em português para “aviõezinhos”) que ganham, no máximo, entre US$ 3.000 e US$ 4.000 por viagem, como me disse a esposa de um deles que cumpre pena nos Estados Unidos, onde há mais de mil raizales presos por envolvimento com drogas”, informa Tory Rockett, ativista e pesquisador de questões raciais e de desenvolvimento sustentável. Além de serem extraditados, marinheiros pegos com drogas têm seus barcos confiscados, o que impossibilita a sobrevivência das famílias. “Há um sério problema de crack nas comunidades pobres e as ilhas foram usadas por muito tempo como ponto de tráfico e refúgio seguro para barões da coca colombianos”, acrescenta.
Para combater o comércio ilegal, o governo vem aumentando drasticamente também a população militar do arquipélago formando um contingente, segundo Howard, de mais de 4 mil homens entre soldados e policiais. Desse modo, os conflitos entre as forças de segurança e raizales pobres também têm sido mais constantes. “As escolas nas ilhas são muito pobres e tem crescido a discriminação contra os negros”, afirma Rockett. “Quando vivi en San Andrés, entre 2005 e 2006, vi um documento confidencial do governo no qual aparecia a cifra de 75% de desemprego entre os raizales”.
O pesquisador norteamericano foi contratado pela Universidade Cristã, fundada pelo ex-pastor da Primeira Igreja Batista de San Andrés, George May, para dar melhores condições de estudo para os raizales. O trabalho de Rockett era apontar alternativas para o único lixão da ilha, ironicamente chamado Magic Garden (jardim mágico), encravado no meio das comunidades Raizales de Barrack, Orange Hill e La Loma. “O depósito já tinha atingido sua capacidade máxima e era a principal fonte de contaminação dos lençóis freáticos da ilha e dos problemas de saúde”, diz. “Depois eu soube que o governo local estava testando outras alternativas como incineração, mas que estava proibido de lançar o lixo no mar, e havia aberto pelo menos duas áreas em Magic Garden para depositar as cerca de 100 toneladas de lixo produzidas diariamente nas ilhas”. Apesar de o território ter sido declarado Reserva da Biosfera pela Unesco em 2000, o descaso com a contaminação continua. E com a iminência de elevação do nível dos mares por causa do aquecimento global, cresce a possibilidade de inundações e de perda de território raizal ancestral, já que por causa da atividade pesqueira, muitos moram na praia.
Sua presença centenária nas brancas areias banhadas por ondas de um azul cristalino, aliás, é fonte de um outro embate com o governo colombiano. Há quatro anos a administração local baixou um decreto para a derrubada, sob força policial se necessário, de todas as edificações construídas nas praias. O projeto, que já está na segunda instância de aprovação pelo legislativo, não traz uma única linha sobre o destino das pessoas que moram nessas casas.
“São mais de 500 famílias, muitas com títulos de propriedade da terra expedidos antes da independência da Colômbia”, afirma Mitchell. De fato, segundo a história do território, em 1810 o então governador Thomas O Neill distribuiu títulos de propriedade a todos os que viviam nas três principais ilhas. Vinte e quatro anos depois, Philip Beekman Livingston libertou todos os escravos de sua mãe que havia falecido e transferiu-lhes a posse das terras. “No ano passado, durante seu discurso na reunião do Grupo do Rio em Santo Domingo, República Dominicana, o presidente da Colômbia Álvaro Uribe afirmou que o governo iria ajudar a iniciativa privada e implantar cinco grandes projetos hoteleiros no arquipélago”, cita Howard. “Com mais de 100 pessoas num território em que a maior ilha tem pouco mais de 12 km de extensão por 3,5 km de largura, não há espaço para esses resorts, a não ser retirando a população raizal”.
Por causa das constantes agressões, militarização e colonização provenientes do continente, os raizales iniciaram ainda nos anos 1960 uma série de movimentos pela independência e autodeterminação. Nunca chegou a existir um grupo guerrilheiro e nem ações armadas para a tomada do poder. Contudo, grupos como Os Filhos da Terra (S.O.S. na sigla em inglês) nos anos 1970 e 1980 e o atual AMEN-SD têm tentado divulgar a causa raizal nos organismos e encontros internacionais. “Desde a década de 1960 temos lutado junto à Organização das Nações Unidas pelo reconhecimento de que somos um povo em território sob ocupação de potência estrangeira”, explica Howard. “De acordo com as resoluções 1514 e 1541, é possível exigir a descolonização e a independência, como ocorreu com a Nigéria na África e com a Jamaica aqui no Caribe”. Mas para isso o governo da Colômbia teria que reconhecer sua situação, o que não é lá muito provável.
rincipalmente porque, com uma maioria de “estrangeiros” vivendo nas ilhas e dominando sua economia, diminuem as possibilidades de os raizales elegerem políticos que representem seus interesses. Sem falar que alguns de seus “representantes” acabam, digamos, se lambuzando das benesses do poder no continente.
Ainda assim, os grupos que lutam pela autodeterminação seguem enviando petições à ONU e participando de encontros nacionais e internacionais contra o racismo para poder apresentar suas demandas. O mais recente movimento nesse sentido foi a convocação, no início de dezembro, de uma audiência pública no Congresso colombiano, com a ajuda do senador de esquerda Alexander López Maya, integrante da Comissão de Direitos Humanos do Senado, e de entidades não governamentais como a Rede de Colombianos e Colombianas Unidos por Nossos Direitos Constitucionais (Red-Cundecon, na sigla em espanhol) e Projeto Justiça e Vida. “Apesar de termos convocado a audiência com bastante antecedência e termos convidado os dois deputados do Departamento (estado) de San Andrés, na hora do evento o salão do Senado estava trancado e nenhum dos deputados compareceu”, conta Lilia Solano, diretora do Justiça e Vida. “Mas se não continuarmos essa luta, os raizales desaparecerão em pouco tempo, como se nunca tivessem existido”. Quantos outros povos podem estar hoje na mesma situação sem que a grande imprensa dê atenção à sua luta pela sobrevivência?
Publicado originariamente na Revista Fórum 82