Francisco Whitaker defende o Fórum como espaço apenas de debate, onde o movimento que luta por outro mundo possível possa articular lutas e ações comuns. Desafio é superar cultura política e mentalidade de competição
O Fórum Social Mundial (FSM) não deve assumir posições nem emitir declarações finais. Mas o movimento que luta por outro mundo possível deve, sim, articular ações e uma agenda comum. Quem explica a distinção é um dos idealizadores do Fórum Social Mundial (FSM), Francisco Whitaker. “O Fórum não é um movimento, mas um espaço”, explica.
A dispersão de atividades por oito municípios da região metropolitana de Porto Alegre (RS) deve ser compensada, na visão do ativista, pela realização de um seminário de reflexão sobre os 10 anos de Fórum durante as manhãs de 25 a 29 de janeiro. “Em fóruns mundiais a gente evita isso porque a dispersão faz com que as pessoas percam a visão do conjunto. Mas é um fórum regional e o seminário vai criar um contraponto para isso”, avalia Whitaker.
Arquiteto de formação, foi fundador da Associação Transparência Brasil e professor no Instituto de Formação para o Desenvolvimento de Paris e no Instituto Latino-Americano de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ilpes/ONU), além de atuar na Comissão Brasileira de Justiça e Paz e no Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Ele divide com Oded Grajew a “paternidade” da ideia do FSM.
Para Whitaker, o mundo mudou na última década e nem todos os problemas são enfrentadas de forma efetiva. Confira os principais trechos da entrevista:
RBA – Qual é sua expectativa para o FSM 10 anos, da região metropolitana de Porto Alegre?
É um Fórum aberto como os outros, mas com uma grande especificidade, porque tem um seminário internacional de grande porte para avaliação dos 10 anos. É a característica mais especial. Na atividade, há uma mescla de dois tipos de avaliação. Uma do Fórum em si no primeiro dia de balanço. A segunda parte, nos outros três dias, é da conjuntura do mundo e as perspectivas de ação para o movimento altermundialista.
RBA – Qual a diferença?
O Fórum não é um movimento, mas um espaço. Concretamente a criação de praças públicas onde todos, inclusive e principalmente o movimento, possam se reunir para discutir e pensar o que estão fazendo. Há uma diferença de natureza, misturar as coisas confunde. Depois de 10 anos que se passaram, o mundo mudou muito e o movimento não encontrou ainda a melhor maneira de atacar os diferentes problemas, e surgiram questões novas. Se você for analisar os temas das mesas nos três dias de discussão, há pontos até pouco não discutidos ou apenas debatidos com desastres, como o climático. Outros são novos, como os que os indígenas de várias partes da América Latina levantam da crise da civilização. Todos eles vão merecer no Fórum uma reflexão pelas pessoas engajadas pelo mundo afora. Vai ser muito interessante para alimentar o movimento altermundialista. O Fórum dá subsídio, nos espaços abertos ao longo de 2010 e depois em 2011 na África, de muita riqueza para os movimentos pensarem o que estão fazendo.
RBA – A descentralização dos eventos em vários municípios pode causar dispersão?
Acho que não. Termos o seminário em todas manhãs deve garantir aquela convergência. Não sei se quem vai para as outras cidades vai poder vir para o seminário. Tem o Acampamento da Juventude, mais distante. É uma experiência interessante, porque é pluripartidária. A maioria das prefeituras é do PT, mas a de Porto Alegre não é. Em fóruns mundiais a gente evita isso, porque a dispersão faz com que as pessoas percam a visão do conjunto. Mas é um fórum regional e o seminário vai criar um contraponto para isso.
RBA – Em todos os fóruns, a possibilidade de assumir posições é debatida. Isso deve tomar tempo do seminário.
Seguramente vai tomar tempo, vai haver muitas intervenções nesse sentido, mas não cria um problemão, porque a clareza vai aumentando. Assim como coloco a você que é preciso distinguir as coisas é um avanço. Antigamente isso levava a algo como: “Sim, mas não dá para fazer um espaço que seja também movimento?” Não se sabe ao certo o que quer dizer isso aí. Para mim é claríssimo, praça é praça, movimento é ação da sociedade. E tem outra coisa: o movimento altermundialista não é um fim em si mesmo, mas a múltipla mobilização da sociedade inteira em todos os segmentos. É todo mundo que se mexe por um outro mundo. É uma discussão abstrata e meio teórica mesmo. Vai ser um fórum muito útil para o movimento altermundialista, mas também para a criação de praças, porque vale a pena. Foi isso que permitiu que houvesse avanços. O debate continua existindo enquanto não houver clareza sobre a diferença de natureza entre os pontos. Mas estamos avançando.
RBA – O senhor poderia apontar avanços em agendas comuns entre movimentos que atuam em áreas distintas?
Muitos. Considere, primeiro, que a imensa e total compartimentação de 2001 está superada. Todos podem ficar no mesmo espaço sem brigar, podendo encontrar convergências. Dentro de cada segmento, o que houve de encontros de convergência é impressionante. Há redes criadas com temáticas muito precisas. Havia diferentes movimentos para um setor como a água porque a maneira de abordar o problema era diferente. Alguns enxergavam de maneira puramente ecológica, outros se voltavam à privatização etc. Elas se digladiavam sem se encontrarem. Hoje, isso se constituiu como uma articulação única, que não vai seguir uma bandeira única, mas que sabe ajudar a outra quando fizer uma mobilização. Esse tipo de resultado o Fórum já trouxe. Isso ocorre também com a área indígena. A economia solidária deu um salto.
RBA – Faltava só o espaço para superar as divergências?
Também, mas a cultura política nossa era – e ainda é – a cultura da luta pela hegemonia. Você estar na frente de outros, impor o ponto de vista para o conjunto, que se vai conseguindo, devagarinho, ultrapassar. O problema é conquistar a hegemonia ou a união? Do ponto de vista gramsciano, a hegemonia vai muito na linha de alguém que toma a frente, uma vanguarda que vai assumindo a liderança. Temos de pensar em outros termos, recolocar novos conceitos e paradigmas na luta política. Essa cultura política é algo realmente novo. Acho que vai ter debate, mas não vai criar divisões. Se houver rachas, aí sim vamos ficar preocupados. Porque o Fórum é feito para evitar rachas e construir união. Se levar a rachas, melhor pendurar as chuteiras, o que seria trágico, porque o que mais interessa aos dominantes é a divisão dos dominados.
RBA – Considerando-se a crise econômica – que também é de civilização, ambiental etc. – o movimento altermundialista poderia criar agendas capazes de intervenção mais significativa no debate?
Isso já vai acontecendo devagar, mas não se chegou a muita coisa. No fundo, a agenda de mudança é a superação do capitalismo e sua lógica. O modelo econômico de produção industrial e consumo ao máximo para a acumulação de capital é a lógica e o mecanismo básico. A agenda diante disso é não funcionar dessa forma, o que é dificílimo, porque toda a sociedade está voltada para isso. E o sistema tem todos os meios de comunicação para impingir essa mentalidade a todos. Dentro disso, há um monte de gente protestando e resistindo. A própria economia solidária é uma forma de resistir, mas não encontrou o caminho, porque é muito mínima do ponto de vista quantitativo dentro da enorme dimensão da economia capitalista. Outro exemplo são as moedas sociais, um ataque ao sistema, ao ponto central que levou à crise de 2008: a moeda e o crédito. Há experiências na Europa e nos Estados Unidos impressionantes em que se tira da moeda o papel central que tem na vida das pessoas e devolve o papel instrumental. Para chegar lá, vai demorar, porque o que temos é a televisão despejando os valores e a mentalidade competitiva, que está na cabeça até dos melhores ativistas.
Fonte: Rede Brasil Atual