Ficamos sem palavras diante da tragédia do Haiti. Quanta dor e desespero em meio à morte e destruição. E agora, angústia e tensão na luta por água e alimento. Não há como não querer imaginar aquilo tudo distante, tentar fugir de cenas chocantes e profundamente humanas. Aquele olhar inocente de criança com lágrimas nos olhos poderia ser o meu, o seu, o de nosso(a) filho(a). Aquela velhinha errante poderia ser sua mãe. A mulher estirada no chão da falta de tudo, com esperança por estar viva e ter salvado o filho no ventre, parece a sua companheira parindo e dando continuidade à vida. Jovens desorientados(as), sem rumo e com endereço perdido, caminhando em todas as direções à procura de algo, de algum sentido, sintetizam o drama de um mundo diante da catástrofe. Enfim, o Haiti somos nós também, queiramos ou não.
O que fazer? Como assumir a nossa responsabilidade humanitária diante de tal tragédia? Aliás, nos consideramos responsáveis e solidários de algum modo ou buscamos, simplesmente, transferir essa responsabilidade para as costas de outros(as)?
Uma catástrofe natural de tal tamanho se deve, sem dúvida, à força da natureza. Mas aí não está toda a explicação. O Haiti, a sociedade haitiana, é uma produção histórica de dominação e exploração particularmente feroz ao longo dos séculos por uma elite local armada e autoritária, apoiada no exterior. A devastação do terremoto condensa em si toda a injustiça social e ambiental dessa história das estruturas e relações, das formas de dominação, da falta de espaço de liberdade e participação, da exclusão, enfim, de todo um povo. Na resistência e sobrevivência, um bravo e heroico povo. Não podemos esquecer que o povo do Haiti fez a primeira e mais radical revolução contra o sistema colonial e escravocrata do continente americano.
O fato é que também somos responsáveis por essa e tantas outras tragédias que acontecem sem avisar, mas são, ao mesmo tempo, previsíveis. Previsíveis? Talvez não de todo, a gente sabe que vão acontecer, só não sabe quando e onde vão irromper. Por que, então, não estamos preparados para tais situações? Por que temos tanta dificuldade de agir rápido? Na emergência o tempo é uma questão de vida ou morte. Na verdade, nessa natureza viva diversa e sempre em movimento é a extrema desigualdade do próprio mundo humano construído que mais aparece e acaba agredindo as consciências. A incontornável questão ética da unidade e solidariedade humana, por trás das diferenças do território ocupado e da cultura aí desenvolvida, bate fundo. De repente, precisamos agir e não sabemos como. Aí fazemos qualquer coisa.
Nestes dias tomados pelas imagens do sofrido povo do Haiti, tenho pensado muito no meu papel como ativista mundializado e profundamente engajado no processo do Fórum Social Mundial e como diretor de uma organização de cidadania ativa como o Ibase, com todo o legado do Betinho e da campanha contra a fome. Será que estamos, o Ibase e eu, à altura dos desafios que situações assim nos colocam? Sabemos praticar a solidariedade? Em nossa pequenez, mas reconhecimento pela ousadia e valores éticos anunciados, estamos fazendo o que está ao nosso alcance? Trazer ao debate público e ajudar na previsão dos riscos sobre pobres e excluídos(as), sejam grupos localizados ou povos inteiros, pressionar por iniciativas de cidadania, por políticas e ações consequentes do poder estatal e pela responsabilidade do sistema econômico empresarial, tudo isto é nossa missão. Estou falando tanto do Rio alagado e dos desmoronamentos, como da guerra social nas áreas populares e de desastres do tamanho de Porto Príncipe, no Haiti.
A questão crítica – o desafio maior a enfrentar em nossa missão e estratégia de construção de sociedades social e ambientalmente sustentáveis, justas e participativas – passa por aliar ações que apontam para mudanças estruturais com capacidade de resposta cidadã no aqui e agora, nas emergências. Afinal, solidariedade é um imperativo sempre, a toda hora, para organizações como o Ibase. Salvar vidas, na emergência, não é escolha, é indispensável para legitimar ações de transformação estruturais de longo prazo. Essa equação, apesar dos bons exemplos em nossas práticas, como a campanha contra a fome, ainda não está resolvida no nosso campo de organizações de cidadania ativa. Precisamos ser capazes de respostas emergenciais com a mesma capacidade e contundência que elaboramos alternativas que apontam um amanhã diferente, um outro mundo. O Haiti nos questiona profundamente no que fazemos, sobretudo no que priorizamos e no nosso modo de agir.
*Sociólogo, diretor do Ibase
Publicado em 22/01/2010 no portal IBASE