Niels Bohr, em Física Atômica e conhecimento humano dá vários indícios que o conceito de complementaridade da mecânica quântica poderia ser aplicado na análise de fatos e sistemas diversos, relativos não somente ao campo da física, mas também aos demais campos de investigação, seja dos sistemas materiais, ou mesmo humanos, como economia sociologia e psicologia. Para Bohr, nossas análises costumeiras estão condicionadas a demarcar contradição entre pares de “opostos”, enquanto que, na realidade, estes pares podem estar amalgamados em um único sistema, com fluxos e refluxos de influência.
Assim, por exemplo, em mecânica quântica, longe de serem naturezas contraditórias, os aspectos de onda e de partícula, formam um único sistema complementar de descrição dos elétrons. Da mesma maneira, longe de sermos máquinas monoemocionais, nós, seres humanos, somos dotados de uma atividade psíquica arrojada, na qual “forças” aparentemente contraditórias formam a globalidade de um único sistema complexo, no qual oscilamos do amor ao ódio, do sofrimento ao prazer, do inconsciente ao consciente, e somente esta complementaridade entre os diversos matizes da existência humana, pode fazer com que amadureçamos enquanto pessoas e pensadores.
Na base desta visão filosófica está o pensamento de que a natureza, aparentemente composta por diversos níveis de realidade, independentes uns dos outros, constitui, no fim das contas, um sistema global, no qual as diversas regiões da realidade estão de algum modo interconectas. Esta tese, defendida por Goeth, na sua teoria das cores, é endossada por Werner Heisenberg em A ordenação da realidade. A idéia é que a “Realidade” é formada por diversos níveis de realidade, a saber: causal, mecânico, químico, biológico, religioso, artístico e genial. Heisenberg discorre sobre cada um, visando demonstrar como tais “regiões da realidade” estão interligadas por um conjunto de leis.
O empreendimento de Bohr, de estender o princípio da complementaridade para além das searas da Física foi duramente criticado por muitos teóricos, como sendo um arriscado e infundado projeto filosófico. Críticas deste cunho, por exemplo, ocorreram por parte do físico do CERN e da Universidade de Paris, Roland Omnes, no seu livro Filosofia da Ciência Contemporânea. Pela leitura crítica que fazemos do mundo, em detrimento das contra-argumentações ao projeto de Bohr, somos levados a considerá-lo extremamente perspicaz, e do ponto de vista pragmático, bastante útil para a Teoria do Conhecimento, e para problemas políticos, sociais e cotidianos. Por exemplo, ele nos ajuda a desvencilharmos-nos de discussões infindáveis, como a que ocorre atualmente em torno do aquecimento global.
Este fenômeno é um exemplo típico de como diversas esferas da existência estão sobrepostas, trocando fluxos e refluxos de influência, demonstrando serem falsas (meramente aparentes) quaisquer fronteiras entre os campos de investigação humana. Qualquer análise verdadeiramente profunda e responsável deste fenômeno, deverá englobar estudos diversos e interdisciplinares, da astrofísica, e o papel da sazonanidade solar no aquecimento da atmosfera terrestre, aos estudos metereológicos, de como nossa atmosfera e nossos sistemas climáticos reagem ao aquecimento, estudos econômicos, sobre o impacto das atividades indústrias e financeiras no fenômeno em questão, estudos geológicos, apara a análise do caráter cíclico deste fenômeno, e para sabermos se as condições atuais podem ou não ser atribuídas meramente a um ciclo geológico de aquecimento, estudos sociológicos afim de tentarmos mensurar o impacto dos estilos de vida das diversas sociedades do planeta sobre o clima, estudos filosóficos, para tentarmos esclarecer a influência de determinadas visões de mundo sobre os estilos de vida das sociedades, que por sua vez se relacionam com o clima…
Enfim, nos deparamos com uma complexa trama, tecida por diversos campos de estudo, que não mais podem se desenvolver sozinhos. César Lattes, físico brasileiro, em entrevista ao lado de Jose Leite Lopes, outro grande nome de nossa ciência, disse certa ocasião que as ciências não existem, o que existe é a Natureza, e a natureza não é um campus universitário, onde as disciplinas são desenvolvidas separadamente, mas sim um sistema global, onde, da mecânica quântica ao cotidiano humano, diversas regiões da realidade estão entrelaçadas. O aquecimento global, por exemplo, não pode ser bem compreendido pelo espírito tecnicista, de especialização…
Precisamos de homens como Lattes, que ao invés de se interessarem por física, ou química ou economia, se interessem pela Natureza como um todo, pela complementaridade entre a “Natureza Natural” e a “Natureza Humana”. Ouço muitas vozes debaterem sobre a questão de saber se o aquecimento global é um problema (a)“natural” ou (b) “humano”, como se as proposições a e b fossem contraditórias. Não são. Não há nenhuma implicação Lógica nem experimentação empírica que nos leva a crer que estes dois fatores não possam atuar juntos, produzindo a dialética do aquecimento. Se por um lado, o aquecimento do globo é um fenômeno cíclico que se desdobra na história geológica, de modo que boa parte do aquecimento atual ocorreria com ou sem a existência humana, por outro, é também igualmente inegável que o desenvolvimento da indústria e da economia de mercado global, são fatos sem precedentes na história humana e que se ligam ao fenômeno em questão. Do homem do paleolítico ao neolítico, do homem antigo, do medieval, ao moderno, nunca se teve a capacidade de emitir tantos gases de efeito estufa na atmosfera como o possui o homem contemporâneo. Hoje, podemos emitir em apenas uma hora, muitos mais gases que os povos antigos emitiam ao longo de gerações.
Somando-se, portanto, ao aquecimento global que já ocorreria por motivos alheios ao homem, juntam-se as toneladas de dióxido de carbono emitidas por atividade humana, que engrossam a atmosfera, retendo calor em nosso sistema. Nossas camadas atmosféricas de proteção, constituídas por ozônio, acabam por permitir que os raios de sol, ondas eletromagnéticas bem energéticas, penetrem na atmosfera terrestre. Parte destas ondas permanecem aqui, e aquecem o planeta, mantendo-o regulado numa estreita faixa de temperatura ideal para a manutenção dos sistemas biológicos terrestres, e uma outra parte desta radiação solar retorna ao espaço na forma de ondas infravermelhas. Todavia, menos energéticas que as ondas originais, uma parte destas ondas não consegue ultrapassar a barreira de ozônio e escapar de uma camada atmosférica engrossada pelo acumulo de gás carbônico oriundo da atividade humana. Como resultado, a energia retida na atmosfera supera a quantidade ideal, produzindo, em longo prazo, um aumento na temperatura média do planeta.
Os sistemas climáticos são extremantes frágeis, regulados por processos caóticos, nos quais pequenas mudanças nas variáveis que compõem os sistemas podem gerar grandes mudanças nos fenômenos climáticos que decorrem deles. Um pequeno aumento da temperatura atmosférica é o suficiente para desencadear eventos climáticos drásticos.
Analisando um pequeno cubo de gelo de acordo com o conceito de “calor”, vemos que tal sistema, se acrescido de energia, apresentará uma elevação no nível de movimentação de seus átomos constituintes. Quanto maior a movimentação no sistema, mais as moléculas se afastarão umas das outras, e quanto mais se afastarem, mais o sistema mudará do estado sólido, (onde o nível de energia presente é baixo, de modo que a movimentação é mínima, e as moléculas encontram-se muito próximas umas das outras) para o estado líquido. Se o aumento da energia presente persistir, a movimentação tornar-se-á tão intensa, as moléculas afastar-se-ão tanto umas das outras, que do estado líquido, o sistema passará ao gasoso. Com o aumento gradual da temperatura média atmosférica, este fenômeno ocorre em larga escala. Com mais energia presente na atmosfera, com a maior intensidade da incidência direta dos raios solares sobre as geleiras, elas estão descongelando. Na verdade, do Kilimanjaro na África do Sul, a Potosi na Bolívia, dos mantos de neve dos Alpes suíços aos Andes sulamericanos, o ritmo do degelo mundial é estarrecedor.
Os ciclos geológicos de aquecimento e as atividades humanas, motivadas por fatores culturais, geográficos e econômicos – políticos, se complementam, desdobrando em nosso tempo, a dialética do aquecimento global contemporâneo. Que o planeta sempre se adapta e permanece, assim é e será até a sua morte astrofísica, quando a evolução do sol para novos estágios de vida estelar não mais permitira a vida na Terra e por fim, a fará explodir. Mas se humanidade permanecerá deste momento em diante e em que condições, dependerá de como nos portaremos diante deste problema. Em um sentido filosófico mais profundo, ou seja, em um sentido “espiritual”, o aquecimento global é um problema moral, ético, e diz respeito ao modo como a humanidade vê e se relaciona com seu meio ambiente. Profundas transformações, no “nível do espírito”, novas “Renascenças” adaptadas ao tempo presente, são sempre necessárias para que a humanidade evolua. Pragmaticamente, esta também é uma questão macro-administrativa: nosso sucesso dependerá da nossa capacidade de coordenarmos nossas ações, efetuarmos reformas culturais, financeiras, institucionais, de forma eficiente, em suma, do modo e da velocidade com que responderemos as crises que virão, das alternativas, das soluções que propusermos, do modo como administraremos nossas atividades daqui em diante.
Posso creditar a esta postura dos que defendem teses estapafúrdias de que a atividade humana em nada se relaciona com tal problema, um tipo de ingenuidade ignorante típica dos que falam do que não sabem, e a estes recomendamos boas doses de espírito investigativo, pois mais nobre que o som de vozes acaloradas é o silêncio da pesquisa cuidadosa. Mas pode ser também que defendam esta tese por razões psicológicas e eis que assim sendo, recomendamos sessões de psicanálise freudiana ou da psicologia analítica de Jung , conforme a afinidade de cada um. Ou, que “pratiquem” Filosofia, (o que consideramos mais proveitoso), olhando o “terror” nos olhos, e com serenidade, desvendando-lhe os mistérios. Algumas pessoas, diante do perigo iminente, preferem adotar uma postura de negação, como se nada de errado houvesse. Lhes falta força para encarar o lado trágico da vida de frente, como faziam os antigos gregos, e aí, a Mente, cheia de encruzilhadas e recursos, consegue fazer com que não consigamos perceber mesmo o que se escancara a nossa frente.
Enfim, e o que me soa mais baixo e imbecil, pode ser que haja os que consideram tal questão desvantajosa para suas posses, e prefiram que o mundo se carbonize idiotamente, a verem seus mega-empreendimentos prejudicados financeiramente. Difícil de acreditar que possa haver tamanha cegueira intelectual, que haja pessoas que acreditam que com o dinheiro acumulado por elas, poderão comprar um ar condicionado astrofísico, a fim de resfriarem a terra quando necessário for, ou que acreditam que o clima irascível e titânico que virá, que as tsunamis que Poseidon fará cair sobre a terra, que as fissuras na derme de Gaia, afetarão somente aos pobres… Bem, a estes, o que recomendaremos? Encomendemos, então, ao menos, as suas almas: Pai! Perdoai-nos, mas não estamos certos se eles realmente não sabem o que fazem …
Foto na capa: Renato Araújo – Cozinha da Aldeia da Paz, no Acampamento Intercontinental da Juventude, que abriga participantes do Fórum Social Mundial em Novo Hamburgo, RS