A pouca visibilidade do movimento negro no FSM

A proposta do Fórum Social Mundial desde sua primeira edição, há 10 anos, é oferecer um espaço em que convergências e alianças possam ser travadas de modo aberto e diversificado por várias organizações e movimentos sociais. Mas mesmo que diversos grupos sejam admitidos formalmente, já que o Fórum conta com um documento básico, a sua Carta de Princípios, há interações sociais que privam os diferentes atores de se inserirem nas discussões e nas várias atividades do Fórum, como é o caso dos movimentos negros.

Com base em entrevistas com integrantes dos movimentos negros no Fórum Social Mundial de Belém (2009) e no Fórum Social Mundial Temático da Bahia (2010) e na análise de documentos, a percepção dos movimentos negros brasileiros é que eles teriam pouca visibilidade neste espaço. Isso significa que eles ocupariam espaços pouco privilegiados se comparados a outros movimentos, tanto em termos quantitativos como qualitativos. Essa visibilidade estaria relacionada à busca por reconhecimento social, à inserção desses movimentos nas atividades, à existência de atividades que
tratassem da temática do anti-racismo, à entrada em discussões principais, à interação e articulação com outros movimentos dentro do Fórum.

Para se ter uma ideia, das mais de 1300 atividades realizadas por organizações brasileiras, previstas na programação do FSM Belém 2009, apenas 4,2% tratou da temática do anti-racismo. Já quando as atividades eram propostas conjuntamente por movimentos negros com outras
organizações, apenas 31% dessas atividades incorporaram a temática do anti-racismo, sabendo que em atividades desta natureza haveria uma maior possibilidade da temática ser inserida, numa perspectiva racial que dialogasse com temas gerais e estivesse visível a outras organizações.

Partindo desses dados podemos levantar algumas explicações para essa pouca visibilidade.

Em primeiro lugar, é possível questionar em que medida os movimentos negros tiveram dificuldade de inserir as suas questões nos diferentes espaços e discussões do Fórum e assim buscarem uma maior visibilidade. Na tentativa de trazer a temática do anti-racismo, eles acabaram esbarrando na afirmação de suas diferenças. Mesmo entre as atividades propostas diretamente por movimentos negros, em que 97% delas foi sobre a temática anti-racista, os temas foram tratados de modo isolado, em espaços específicos por quilombolas, negros urbanos, afro-religiosos, juventude negra, entre outros. Essas “divisões” dos movimentos negros naquele espaço foi uma opção estratégica que também comprometeu a sua visibilidade.

Uma segunda reflexão que pode ser levantada a partir da dificuldade de inserção desses movimentos e que muitos entrevistados apontaram foi que os movimentos negros falaram para si mesmos. No caso do FSMT-BA 2010, apesar da temática do anti-racismo estar mais visível nas atividades principais, podíamos ver negros falando para um público negro. Isso foi algo que muitos integrantes dos movimentos reconheceram como um problema, visto que a questão racial não se restringe a um grupo específico, mas deveria ser algo pensando e debatido por todos, sejam negros ou não-negros.

Nessas duas edições do Fórum também foi perceptível que muitas restrições se impuseram ao acesso do público aos espaços das atividades do Fórum. Como o público que se interessava pelas discussões feitas pelos movimentos negros brasileiros era majoritariamente negro, é possível que
quanto mais se tivesse a oportunidade de negros estarem presentes, mais esses contribuiriam para maior notoriedade e pressão por mudanças referentes às demandas desses movimentos. Por questões de logística, o acesso ao Fórum foi controlado pela organização, fato este que impediu a
entrada da população residente próxima ao local do Fórum, ajoritariamente negra.

Por fim, uma última reflexão que podemos fazer, dentre outras, é se o Fórum continua sendo um espaço legítimo e reconhecido pelos movimentos negros. Se acompanharmos a história da inserção da temática do anti- racismo nesses dez anos de FSM, apontada por alguns entrevistados e organizadores do Fórum, veremos que ela foi pautada como objetivo do encontro somente no ano de 2009. Além disso, muitos encontros importantes para os movimentos negros têm sido realizados concomitantemente com o Fórum, o que desloca as discussões para outras esferas, retirando o foco daquele espaço. Isso reforça o isolamento desses movimentos – visto que o Fórum deveria ser um espaço de troca e convergências – e contribui juntamente com outros fatores para a sua pouca visibilidade.

Diante desses elementos escolhidos para a reflexão sobre a questão da visibilidade dos movimentos negros, com base na pesquisa feita, podemos ver que esses movimentos ainda não conseguiram superar a dificuldade do enfrentamento de suas próprias diferenças, nem tampouco de conquistar mais trocas e fazer alianças com outros tipos de movimentos no FSM. Pela
complexidade da questão e longe de se restringir ao Fórum, a luta dos movimentos negros passa pela resistência da sociedade brasileira, de um modo geral, em assumir-se como um país de desigualdade racial, o que afeta as opções políticas tomadas nos diferentes espaços, sejam nas
instituições ou em espaços que se propõem ao debate diversificado como o Fórum. Além disso, podemos problematizar em que medida as mudanças por maior abertura e acesso aos recursos que os movimentos negros reivindicam poderão ocorrer com base nas estratégias traçadas por eles.

Em que medida os movimentos negros brasileiros poderão ordenar essa ação coletiva inovadora na busca do outro mundo possível das relações raciais nos próximos anos? E será que nos próximos Fóruns?


Juliana Lima Maia é aluna de mestrado no Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília e integrante do grupo de pesquisa “Sociedade Civil e Negociações Internacionais”, coordenado pela professora Marisa von Bülow, que vem desenvolvendo uma pesquisa sobre o Fórum Social Mundial há 2 anos. Contato: juliana_lmaia@yahoo.com.br.

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