Vigiar e Punir: a reforma administrativa e o desmonte final do Estado nacional

As propostas de Reforma Administrativa de Paulo Guedes e Rodrigo Maia, alardeadas pelos meios empresariais e grande mídia, simplesmente não resolverão nenhum dos problemas reais do setor público brasileiro, mas criarão ou farão piorar vários outros.

A ideia de que uma Reforma Administrativa possa reduzir significativamente as despesas governamentais, sobretudo o gasto com pessoal, é a nova-velha falácia de Guedes, Maia e cia. Mais uma vez, setores retrógrados da nova política (sic!) não consideram os dados nem os fatos, mas tentam impor uma nova rodada de ajuste fiscal, baseado em valores ideológicos, sem diálogo e sem fundamentação técnica nem histórica.

Em essência, tais propostas carecem de compreensão sistêmica sobre os condicionantes e determinantes do desempenho estatal no campo das políticas públicas. Para não dizer que não há preocupação alguma com o Estado, suas organizações, funções e servidores, veja-se que tanto na reforma da previdência como nas PECs 186, 187, 188, de 2019, e agora na PEC 32 de 2020, é conferido tratamento diferencial e privilegiado somente ao núcleo militar-policial-judicial-repressivo do Estado. E assim vai-se consolidando um estado de exceção permanente no país, como forma de viabilizar – pelo uso aberto da força física e das várias formas de violência institucional e simbólica – o projeto liberal-fundamentalista do mercado e dos valores arcaicos de uma sociedade patriarcal, religiosa-dogmática, autoritária, racista e misógina.

Para tanto, as referidas PECs visam promover, na realidade, um abrangente e profundo ajuste fiscal, tomado este apenas pelo lado das despesas públicas, calando-se sobre as imensas iniquidades e regressividade da estrutura tributária pelo lado da arrecadação. Linhas gerais, portanto, essa perna de reforma fiscal, travestida de reforma administrativa, objetiva:
i) maior flexibilidade quantitativa por meio da expansão das possibilidades de contratação e demissão;
ii) maior flexibilização remuneratória e redução das despesas globais com o funcionalismo;
iii) maior competição interpessoal e concorrência intra/inter organizacional;
iv) nova regulamentação da demissão por insuficiência de desempenho;
v) obstaculização das formas de organização, financiamento e atuação sindical no setor público; e
vi) deslocamento para o âmbito privado, através da implementação do princípio da subsidiariedade, do grosso das funções e políticas públicas em campos rentáveis para a acumulação de capital.

A sua visão é intrinsecamente negativista acerca do peso e papel que o Estado deve ocupar e desempenhar nas economias e sociedades contemporâneas. Por isso, deverá produzir resultados opostos aos desejados, com enormes e negativas repercussões sobre a capacidade de crescimento, geração de empregos e distribuição de renda e riqueza numa sociedade, tal qual a brasileira, já marcada estruturalmente por imensas heterogeneidades, desigualdades e necessidades de várias ordens.

As diretrizes de política econômica já são bem conhecidas no Brasil, pelo tripé de política macroeconômica (vale dizer: regime de metas de inflação, perseguidas em grande medida pela combinação entre taxa de câmbio apreciada e geração de superávits fiscais primários elevados e permanentes), que vem sendo seguido desde basicamente 1999 e para o qual importam: i) a manutenção de taxas de juros oficiais acima das respectivas taxas da maior parte dos países que concorrem com o Brasil pelos fluxos internacionais de capitais; e ii) a normatização de alguns regramentos de natureza econômica, particularmente os das finanças públicas, tais como a LRF, a EC 95 e as PECs acima citadas, fenômeno por meio do qual eles se transformam em regras fiscais rígidas, tanto mais difíceis de cumprir e manejar quanto mais no plano constitucional estiverem.

Como se vê pelo gráfico 1, tal fenômeno vai então institucionalizando um verdadeiro processo de financeirização da Dívida Pública Federal e privatização da sua gestão pelas autoridades monetária (BACEN) e fiscal (STN) do país. A constitucionalização das normas citadas promove, de um lado, bloqueios e limites superiores ao gasto fiscal primário de natureza real, justamente o gasto que é responsável pelo custeio de todas as despesas correntes, tanto as intermediárias/administrativas, como as finalísticas destinadas à implementação efetiva das políticas públicas federais em todas as áreas de atuação governamental. De outro lado, regramentos que representam a flexibilização (sem limite superior) e a blindagem (inclusive para fins criminais) do gasto público financeiro, cujos principais beneficiários são as instituições financeiras (bancos, corretoras, seguradoras), fundos de investimento e agentes econômicos de grande porte.

Gráfico 1: Financeirização e Privatização das Finanças Públicas no Brasil.
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Fonte: IBGE, Contas Nacionais. Elaboração: Paulo Lindesay, Assibge, 2020.

É fato que no período mais recente houve recomposição de pessoal e de salários na Administração Pública, mas também é fato que esses movimentos foram incorporados à estrutura de gastos do Estado brasileiro, uma vez que acompanhados de aumentos na arrecadação de impostos e no PIB no mesmo período. Como se vê pelo gráfico 2, a relação gastos de pessoal sobre o PIB (assim como sobre a arrecadação total e sobre a massa salarial do setor privado, que não estão nesse gráfico) foram mantidas estáveis desde 2000.

Gráfico 2: Despesas com Pessoal no Setor Público em relação ao PIB.
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Fonte: IBGE, Contas Nacionais. Elaboração: Paulo Lindesay, Assibge, 2020.

Ademais, como se vê pelo gráfico 3, as despesas com pessoal, em âmbito federal, jamais suplantaram os limites da LRF, mantendo-se o tempo todo bem abaixo da receita corrente líquida.

Gráfico 3: Despesas com Pessoal X Receita Corrente Líquida e LRF.
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Fonte: IBGE, Contas Nacionais. Elaboração: Paulo Lindesay, Assibge, 2020

Além de não alterar as proporcionalidades, o número de servidores civis ativos hoje na União é praticamente o mesmo de 30 anos atrás, mas a qualificação e a composição desses profissionais passaram por importantes mudanças. Hoje os servidores públicos são, na média, mais escolarizados e melhor formados, estão alocados em atividades finalísticas (sobretudo naquelas de atendimento direto à população, como saúde, educação, assistência social e segurança pública) e há mais mulheres e mais negros que há 30 anos.

Dados do Banco Mundial revelam que a razão entre a quantidade de funcionários públicos e a população no país é de 5,6%. Essa proporção é apenas um pouco maior que a média da América Latina, de 4,4%, mas menor que a média da OCDE, que é de aproximadamente 10%. Também não se observa crescimento explosivo do emprego público. Como proporção da população economicamente ativa, e considerando uma série de dados entre 1992 a 2017, verifica-se que o percentual de vínculos públicos passou de 9% a tão somente 11% do total.

Por sua vez, dados do Atlas do Estado Brasileiro, organizados pelo IPEA, mostram que a força de trabalho ocupada no setor público se escolarizou e se profissionalizou para o desempenho de suas funções. A expansão ocorreu com vínculos públicos que possuem nível superior completo de formação, que passaram de pouco mais de 900 mil para 5,3 milhões, de 1986 a 2017. Percentualmente, este nível saltou de 19% do contingente de vínculos em 1986 para 47% em 2017.

Nos municípios, a tendência de aumento de escolarização dos vínculos públicos foi também bastante acentuada. A escolaridade superior completa aumentou de 10% para 40% entre 1986 e 2017. Nesse nível federativo, chama atenção que as ocupações que constituem o núcleo dos serviços de assistência social, saúde e educação (tais como professores, médicos, enfermeiros e agentes de assistência e saúde), correspondem atualmente a 40% do total dos vínculos públicos existentes no Brasil, razão essa suficiente para desaconselhar qualquer reforma administrativa que objetive reduzir ou precarizar essas ocupações.

Também é importante lembrar que o Estado brasileiro, com um número praticamente igual de servidores, oferece hoje muito mais políticas públicas e entrega efetiva de bens e serviços às empresas e à população que há 30 anos. Ou seja, usando conceitos econômicos de eficiência e produtividade – que Guedes, Maia e cia parecem ignorar em suas propostas – o setor público brasileiro é hoje mais produtivo e eficiente que há 30 anos, resultado direto e positivo, pasmem, das diretrizes e concretizações da CF-1988!

Se Guedes, Maia e cia estivessem de fato interessados em uma reforma que buscasse melhorar o desempenho institucional da máquina pública, deveriam olhar para onde de fato estão os problemas da gestão e do funcionalismo no Estado brasileiro. Os problemas existem e não são poucos, estando localizados, na verdade, em traços históricos arraigados de burocratismo e de autoritarismo, tanto nas formas internas de organização e funcionamento da máquina pública, como nas relações pouco republicanas, pouco democráticas e bastante seletivas do Estado com agentes privilegiados do mercado e, sobretudo, com parcelas imensas da população, ainda hoje alijadas da cidadania plena e dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, em várias de suas dimensões.

Ou seja, os problemas de fato existentes são maiores e mais complexos que o discurso simplista e falacioso de Guedes, Maia e cia sobre inchaço da máquina e explosão dos gastos com pessoal. Porém, não serão enfrentados, primeiro porque esses atores não têm nem capacidade técnica nem sensibilidade política para o tema; segundo porque a sanha persecutória contra servidores é a senha certa para mais uma reforma fadada ao fracasso, tais como já se mostram as reformas trabalhista e previdenciária recém implementadas.

Em outras palavras: tratar a questão do funcionalismo sem entendê-la como questão de Estado, e pior, sem conexão alguma com um projeto de desenvolvimento econômico, social, ambiental etc. é a melhor maneira para não resolver os problemas da administração pública.

Imagem capa: Montagem Ciranda.net/Tatiana Scalco, com imagens de Sindicontas/PR e EBC

José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.

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