A pandemia do coronavírus (Covid-19), nos fez ficar em isolamento, mantendo distanciamento social.
Cumprindo a parte que me cabe, eu saia de casa apenas quando necessário, para ir ao mercado ou até a casa da minha mãe. Ela mora na mesma ruazinha estreita, em que todos se conheciam e estar lá sempre fazia lembrar de minha infância…
“Ô praga!!! Que coisa esse menino!!! Ele é muito apressado, não tem paciência pra nada, além do mais, ninguém pode falar um „A‟ meio torto que ele já quer briga”.
Era assim que a vizinhança falava a meu respeito quando criança.
De fato eu devia atazanar a vida dos vizinhos e vivia brigando por qualquer motivo.
Eu “era mesmo terrível”, como diz minha mãe.
Por outro lado, meu pai, fazia questão de dizer que eu “não dava moleza”, especialmente quando estava com seus amigos que me apoiavam dizendo frases como “é isso aí”; “mostra quem é que manda”; “esse é um dos meus” etc.
Lembro que, às vezes, minha mãe me fazia algum chá para que, quem sabe assim, eu ficasse mais calmo. E assim fui crescendo, e assim também crescia a minha fama de nervoso, briguento etc. As pessoas falavam, minha mãe falava, minha avó falava…
Um dia eu estava deitado no quarto da frente da casa e minha mãe não se deu conta de que eu estava ali, aliás, quem poderia imaginar que eu pudesse ficar parado num quarto durante o dia? Ela conversava com a Dona Ana, vizinha da frente, que começou a falar que eu era muito nervoso, que brigava com todo mundo e que devia existir alguma coisa que pudesse ser feita para que eu melhorasse. Mal sabia a Dona Ana que aquelas palavras me fizeram pensar e me ajudaram a ser o que hoje sou.
Claro, se todos estão falando e se minha mãe está tão preocupada, não é possível que todos estejam errados e eu certo, pensei.
Assim, busquei obstinadamente uma mudança em mim mesmo. Passei a considerar mais as pessoas e a tentar ver apenas o lado bom delas, a reconhecer os meus
erros e a entender que entre uma coisa certa e outra errada existem milhões de outras coisas que nem sequer consideramos ao fazermos julgamentos precipitados.
Passados mais de quarenta anos eu tenho boas lembranças e aprendi, também, que o que parece ruim só o é enquanto estamos vivenciando o problema, e que podemos guardar o experimento com mágoa e sofrendo eternamente por algo que já foi ou com alegria pelo aprendizado proporcionado.
Hoje está em moda dizer que as pessoas têm que ser verdadeiras, autênticas, livres e que devem dizer e fazer o que der na “telha”. Tudo parece descartável, não há compromisso nenhum com nada e com ninguém. Usa-se comumente apresentar-se como amigo ou amiga para galgar carreiras, cargos etc. Tudo vai se transformando, e logo deveremos riscar do nosso dicionário a palavra estabilidade. A sociedade não aceita mais alguém que pense desse jeito, as “coisas” mudam constantemente e você não pode ficar parado.
Desta forma, acabaremos ficando como um sanduíche adquirido em “drive thru”, com uma “vantagem”: alguém nos pega numa porta, nos consome, nos joga fora, nós nos reciclamos e estaremos prontos novamente para sermos usados na outra porta.
Eu que adorava uma briga, passei a não gostar nem de assunto em que elas, as brigas acontecem.
Lembro que um dia encontrei com a Dona Ana e contei a ela toda a história… Em quanto eu narrava, ela me olhava com um ar de espanto e ao mesmo tempo meio contente, pois ela nunca soube que eu tinha escutado aquela conversa. Ao terminar eu disse que ela era a culpada por ser essa “meleca” de hoje. Rimos muito e, pra falar a verdade, tanto eu, quanto as pessoas com quem convivo, somos mais felizes hoje.
Obrigado Dona Ana.
Julgo correto que as pessoas tomem decisões, opinem quando são solicitadas, sem medo de demonstrar sua forma de pensar; tenham opções claras quanto à política, religião etc., e que, se forem diferentes das nossas, isso não deve nunca ser motivo para desavenças severas, ao contrário, isso é muito saudável, pois, que graça teria a vida se todas as pessoas pensassem e agissem exatamente da mesma forma?
Contudo, há os intolerantes e o que é pior, não são poucos, e como disse Karl Popper, em 1945, se os intolerantes forem tratados com tolerância ilimitada, a tolerância será extinta.
“Santa pandemia” – tão paradoxal quanto o “Paradoxo da Tolerância” de Popper é tratar a pandemia do coronavírus por “Santa”, mas ela está nos fazendo estar “em nós mesmos” e, apesar da tristeza de tantas mortes, está nos fazendo, também, refletir um tantinho a mais sobre a beleza de viver.
É possível pensar mais uma vez e, também, calar-se sem com isso ser inferior a ninguém.
É preciso e possível aprender sempre. Nenhum professor fica feliz com a aula dada se com ela não tenha aprendido também.
É preciso e possível agir e fazer do medo um aliado, pois ele pode ajudar a agirmos com cautela e com o respeito que todas as pessoas envolvidas na ação merecem.
Enfim, é preciso e possível não perder o “agora”.
“Agora” é o momento da criação!
Em tempo, a Dona Ana faleceu dia 15 de abril de 2005. Ainda bem que não perdi aquele “agora”, disse tudo a ela e pudemos rir muito naquele momento.