Terra em disputa: conflito fundiário contra Pataxós no Extremo Sul da Bahia reinflama neste inicio de setembro

Ontem (31.08.2020), o Juiz Pablo Baldivieso, da Vara Federal de Eunápolis, contrariou, mais uma vez, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), ao manter decisão liminar de 20.08.2020, autorizando reintegração de posse de 401,2m2 contra os Pataxó do Território Indígena (TI) Ponta Grande – Aldeia Novos Guerreiros, localizada Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro-BA. Na mesma decisão, o juiz também indeferiu pedido da Defensoria Pública da União (DPU) para atuar no processo.

Apesar de comunicado que a área já é objeto de regular processo demarcatório; que há Grupo de Trabalho [2] constituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) realizando estudos antropológicos desde 2017 e que foi apresentada manifestação da FUNAI [3] informando que “referências apresentadas pelos índios dão conta do uso ancestral da região como local de coleta e passagem para suas atividades de pesca”, o Juiz Baldivieso decidiu desconsiderando as informações técnicas apresentadas.

Em sua primeira decisão (dia 20.08.2020) [4], registrou que “a ocupação indígena na área não foi comprovada por estudos antropológicos, tampouco com documentos que digam que a área, específica do clube de aviação, realmente é objeto de demarcação”. Na sua segunda decisão (31.08. 2020) [5], reafirmou sua liminar expedida em 20 de agosto.

Segundo Dra. Samara Pataxó, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), as decisões do juiz Baldivieso violam a determinação de repercussão geral do Ministro Edson Fachin do STF [6] em não fazer reintegração de posse e atos da mesma natureza nesse processo de pandemia, de forma a resguardar a integridade e vulnerabilidade dos indígenas.

A decisão do Ministro Fachin do STF, emitida em 06.05.2020, foi decisão de repercussão geral. Isto é, teve caráter vinculativo a todos os demais juízes e tribunais. Fachin decidiu pela “suspensão nacional dos processos judiciais, notadamente ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação, bem como os recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas”[6].

A primeira decisão (publicada em 20.08.2020) do Juiz Baldivieso fez com que a DPU entrasse com Reclamação Constitucional junto ao STF ontem (31.08.2020)[7a e 7b]. O Defensor Regional de Direitos Humanos na Bahia Vladimir Ferreira Correia destacou na reclamação a necessidade da “preservação da competência dos tribunais superiores e de garantia da autoridade de suas decisões”.

Hoje (01.09.2020), a DPU protocolou no STF petição incidente no processo RE 1.017.365/SC, informando ao Ministro Edson Fachin o descumprimento de sua decisão de repercussão geral ocorrida no âmbito da ação possessória nº 1001524-13.2020.4.01.3310. [8]

Repercussão das decisões judiciais junto aos defensores da causa indígena

Payayá, uma das lideranças da Aldeia Novos Guerreiros -local do conflito, fala do temor relativo às repercussões da decisão de reintegração de posse venham atingir não só o Território Ponta Grande. Mas também a questão territorial indígena em si, de modo geral no Brasil. “Nos últimos dias nós não temos dormido, procurando uma solução para esta questão”.

Dra. Samara Pataxó da APIB comenta que o juiz de primeiro grau desconsiderou que “a posse da terra indígena é posse originária, tradicional”. Ou seja, mesmo que o procedimento demarcatório não tenha sido finalizado, “a terra não deixa de ser terra indígena”. E destaca que ela viola a determinação do STF relativa a não fazer reintegração de posse e atos da mesma natureza durante a pandemia do COVID 19, de forma a resguardar a integridade e os indígenas da vulnerabilidade da situação.

O coordenador do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), Kahu Pataxó, fala da extrema preocupação do movimento com essa situação. Disse que estão acompanhando os desdobramentos. Informa que colocaram a assessoria jurídica do Mupoiba à disposição da comunidade e acionaram a DPU para atuar. Além de estarem em diálogo com a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Assistência Social (SJDHSD) do Estado da Bahia, “para garantir um diálogo para que as comunidades não fiquem a mercê da força policial”.

Kahu destaca que“(…) uma decisão de reintegração de posse nesse momento de pandemia, e principalmente contra um território indígena é colocar em risco a vida da população indígena, o direito dos povos indígenas”. Ele complementa explicando que as terras da região, conhecida como região do Descobrimento são terras indígenas.

O coordenador do Mupoiba destaca que “o que deveria ser discutido é como vão fazer para que essas terras sejam devolvidas às comunidades indígenas”. Ele registra que a situação tem influências fortes do poder econômico e que apesar do movimento estar enfrentando a situação, “não é fácil”. “Há posições de vários políticos da região contra os territórios indígenas”.

Haroldo Heleno, do Conselho Indigenista Nacional (CIMI), destaca que as decisões do juiz Baldivieso desrespeitam a garantia do direito constitucional do povo indígena.

Heleno continua comentando que “essa ação (a decisão do juiz) se torna uma ação nós chamaríamos um crime, porque coloca em risco todas essas famílias que ali estão; quando deveriam fazer ações contrárias, no sentido de garantir a preservação física e cultural desse povo”. Complementa apontando que ela (a decisão do juiz) vem de encontro a determinação do STF; e também das determinações das Organização Mundial da Saúde (OMS) e até do Ministério da Saúde do país relativas ao distanciamento social e aos cuidados necessários para que o pessoal evite contaminação do Covid 19.

O cacique Ramon Tupinambá de Olivença fala da sua preocupação com o descumprimento da decisão do STF, onde não poderia haver reintegração de posse em relação aos povos indígenas. Ele observa que o “território ancestral pertence aos parentes Pataxós” e que eles precisam do seu território para sobreviver e garantir suas famílias e que espera que isso logo seja resolvido e decisão revogada o mais rápido possível.

O Cacique Payayá da Aldeia de Utinga aponta que essa é uma ação jurídica premeditada com objetivo de prejudicar os indígenas. Fala que os povos indígenas Pataxó convivem ali sempre e que sempre foi terra indígena. “Quando vêm alguém e se torna dono por meio de manobras e quando juiz de primeira instância decide expulsar os povos indígenas, ele se vale de uma lei para dar vez a quem não tem a terra originalmente”. Ele comenta ainda que é muito triste um juiz de primeira instância esteja indo contra decisão da Suprema Corte e que se apele para que essa decisão seja barrada. “A proposta que está se fazendo é um extermínio” do povo indígena.

A cacica Cátia Tupinambá, do TI Tupinambá de Belmonte, se solidariza com as famílias Pataxó. Cátia ressalta a falta de respeito com as famílias indígenas e com o STF visto que em tempo de pandemia não deve haver reintegração de posse. Destaca que se isso se a reintegração de posse acontecer é um absurdo. Não podemos aceitar! É justo que os Pataxós fiquem em seu território.

Segundo Dr. Marcelo Bloizi, um dos advogados que atua no processo, a decisão do juiz usa como “posse” o paradigma do código civil, paradigma empresarial, ao invés de considerar o paradigma constitucional indígena. Bloizi comenta que as áreas em litigio estão de posse dos índios há muito tempo. Ele destaca que “posse indígena é estruturada de acordo com a relação antropológica, circular, de uso e por isso a posse indígena tradicional deve ser interpretada diferente”. Comenta também que a posse constitucional indígena é hierarquicamente superior dentro da lógica do direito.

A decisão é ruim, porque abre precedente de posse indígena e só considera a posse civil e não o código constitucional indígena”, fala Bloizi.

As decisões preferidas trouxeram preocupações para quem atua e defende os direitos indígenas, visto que gera “insegurança jurídica” e podem potencializar conflitos. Além de gerarem medo de que a Justiça Federal de 1o grau na Bahia passe a desrespeitar decisão do Supremo Tribunal Federal nos demais processos relacionados aos povos indígenas.

A situação explicita duas visões de mundo e de direito à terra em conflito e que colidem desde 1500. Uma, onde a terra tem valor de troca, sendo empreendimento lucrativos do homem branco europeizado. De outro, a terra, como valor de território, identidade, sobrevivência física, espiritual e reprodução de um povo.

Entenda o caso

veja em
Juiz Federal determina reintegração de posse contra Pataxós, no extremo sul da Bahia

imagem capa: acervo Pataxó Aldeia Novos Guerreiros

imagemtipontagrande-p2.jpg
Imagem do TI Ponta Grande [1]

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– Efeito erga omnes: (do Latim, contra, relativamente a, frente a todos) é uma expressão usada principalmente no meio jurídico, para indicar que os efeitos de algum ato ou lei atingem todos os indivíduos de uma determinada população ou membros de uma organização, para o direito nacional. Enquanto os atos legislativos (leis, decretos legislativos, resoluções, dentre outros) têm como regra geral o efeito erga omnes, na maior parte das decisões judiciais há apenas o efeito inter partes, ou seja, restrito àqueles que participaram da respectiva ação judicial. Fonte: Wikipedia

[1] imagem TI Ponta Grande – clique no ícone para ampliar
imagemtipontagrande-p2.jpg

[2] portaria de criação de GT :
portariagttipontagrande.jpg

[3] manifestação da FUNAI informando que o imóvel está dentro do Território Indígena Ponta Grande:
manifestacao_tecnica_funai_-_imovel_esta_dentro_da_ti_ponta_grande_1_.pdf

[4] decisão do dia 20.08.2020 na integra

[5] decisão do dia 31.08.2020 na integra:
decisao.pdf

[6] decisão de repercussão geral do ministro Edson Fachin na integra
fachintexto_15343026860_1_.pdf

[7a] reclamação constitucional apresentada pela DPU ao STF
reclamacao_constitucional_ponta_grande.pdf

[7b] termo de distribuição da reclamação institucional, distribuído ao ministro Gilmar Mendes
peca_9_rcl_43058.pdf

[8] Petição da DPU informando o Ministro Edson Fachin do descumprimento de sua decisão de repercussão geral.
rcl_43058_-_peticao_informacao_descumprimento_decisao_reintegracao_area_indigena_ponta_grande.pdf

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