Quando aquela mulher humilde, com os pés descalços sobre a terra, usou o termo “sustentabilidade” para falar sobre o que acontece em sua propriedade, o significado da palavra ganhou forma. Rosemeire Ramos da Silva Leal, de 56 anos, recebeu do Incra concessão de uso de 25 hectares no assentamento União Flor da Serra, em Planaltina (GO). Isso foi há três anos e meio. Com um crédito inicial de R$ 2.400, comprou ferramentas e uma vaquinha. Outros R$ 5 mil foram destinados a melhorias na casa, erguida no chão castigado pela antiga plantação de soja. Depois de uma década acampados como sem-terra, ela e o marido, Reginaldo, tornaram-se então assentados da reforma agrária. As dificuldades de sobrevivência começariam a ser abrandadas no ano seguinte, quando chegou por lá uma tal de “tecnologia social” chamada Produção Agroecológica Integrada Sustentável (Pais), com técnicas de agricultura simples, baratas e limpas.
Reportagem de Evelyn Pedrozo e Fotos de Martim Garcia, na Revista do Brasil – Edição 43.
E a sustentabilidade entrou na vida do casal. A família recebeu sementes de hortaliças, calcário, tela, pregos, galinhas e um galo, mais um kit de irrigação com caixa d’água e mangueiras. Assim, foi construído um viveiro, ao redor do qual crescem as culturas cultivadas com adubo orgânico e irrigação por gotejamento. A horta e o galinheiro são complementados com uma agrofloresta, cujo plantio dispensa a derrubada da mata nativa. Nas terras tem tomate, abóbora, maxixe, pimenta, feijão, salsa, alho, café, fumo, quiabo, verduras, frutas, flores e folhagens decorativas. Tudo interligado. E o cheiro do cravo-de-defunto espanta as pragas. Para infecção? Mastruz. A semente da erva-de-santa-maria dá um ótimo vermífugo e cura também inflamações. “Na nossa floresta, toda orgânica, a gente tem solução prá todo tipo de doença. Ninguém precisou mais de remédio. A gente se alimenta sem veneno”, gaba-se Rosemeire, guerreira que sua de sol a sol para semear, plantar e colher e nas noites de lua cheia, “com o céu bem claro”, também não sossega. A primeira fase do sistema Pais é buscar o incremento da produção de alimentos de qualidade, gerando segurança alimentar e a redução de doenças e problemas derivados da desnutrição. “Para nós, já é ganho a família assentada não ter de pagar a própria comida”, declara Ageu da Rocha, representante da Associação para o Combate à Exclusão Social e Preservação Ambiental Chico Mendes. Numa segunda etapa, a proposta é vender o alimento excedente. “Mas só se houver sobra”, destaca Ageu. E para Rosemeire, mineira que aos 7 anos já era vaqueira, qualquer desafio é pouco. Do que viceja nos seis hectares plantados, entre orgânicos e agrofloresta, sobra muito para ser vendido na região. “A gente tira o suficiente para a prestação do carro”, comemora, ao lado do Uno branco que leva as hortaliças e ovos valorizados por serem orgânicos. “Na cidade, cobro R$ 7 a dúzia de ovos. Aqui em casa posso vender por R$ 5.” Ageu observa que, como resultado dessas etapas, filhos de agricultores começaram a voltar para o campo e algumas famílias já dispensam cestas básicas e outras formas de auxílio público. Rosemeire consegue manter sob suas asas dois filhos e seis netos. No pasto, aquela vaquinha já tem a companhia de mais quatro. O próximo passo é levar os produtos para a feira de orgânicos da região. E conseguir um motor para processar a cana e adoçar um pouco mais a vida. O projeto Pais foi desenvolvido pelo agrônomo senegalês Aly N’Diaye, que testou durante cinco anos com 30 famílias, incluindo a dele, um projeto de agricultura e criação de animais menos dependentes de insumos químicos e água. Depois de certificado em 2007, o Pais foi incluído no Programa de Geração de Trabalho e Renda da Fundação Banco do Brasil (FBB), em parceria com Sebrae, Ministério da Integração Nacional e outras entidades. De quase 6 mil unidades implantadas em 19 estados, 4 mil são apoiadas pela FBB, com outros 29 parceiros. “Depois de mais de 10 mil pessoas diretamente envolvidas com o Pais, posso afirmar que uma nova visão de como fazer agricultura sustentável toma conta do meio rural brasileiro. Um dos meus sonhos é conseguir parceiros para levar o Pais ao Senegal, onde nasci”, diz Aly. O programa exige investimento médio de R$ 9 mil por unidade e a FBB já aportou R$ 14,5 milhões no projeto. Humano e sustentável
Na propriedade de Virgílio Pereira Braga em Pontezinha, na zona rural de Santo Antônio do Descoberto (GO), a aplicação de uma tecnologia social desenvolvida pela Embrapa Instrumentação Agropecuária, de São Carlos (SP), resolveu uma questão de saneamento básico. A fossa séptica biodigestora, criada pelo pesquisador Antônio Pereira de Novaes, deu um jeito simples e barato no esgoto. A tubulação dos vasos sanitários é desviada para caixas de cimento armado e a sujeira ainda vira adubo orgânico de qualidade. Ao utilizar o rejeito como adubo orgânico, evitam-se gastos com adubação química e cria-se uma agricultura mais responsável. Uma família de cinco pessoas produz mil litros de adubo líquido por mês. O lençol freático fica livre da chamada fossa negra, comum na zona rural, que contamina águas subterrâneas e os poços de água que abastecem os estabelecimentos agrícolas, o que traz risco de contaminação da população rural por doenças como hepatite, cólera e salmonelose, provocadas por fezes e urina. Já foram instaladas 100 fossas sépticas como essa no entorno de Brasília e outras 436 unidades estão sendo implantadas em localidades de Goiás e Pernambuco. Tudo isso ao custo de impressionantes R$ 1.300.
As tecnologias sociais, conceito que vem sendo construído no Brasil apenas ao longo desta década, unem o saber popular e tradicional ao técnico. Estão espalhadas em diversas áreas, como educação, saúde, meio ambiente e agricultura. Nascem, geralmente, não em um laboratório, mas dentro das comunidades. Com baixo custo de implementação e alto potencial transformador, apontam saídas para problemas cotidianos. Um exemplo clássico é o soro caseiro feito com uma pitada de sal e duas colherinhas de açúcar misturados a um copo de água. A receita já salvou milhares de crianças da desidratação. Na saúde, também se destaca a multimistura, que combate a desnutrição. Uma tecnologia social se diferencia por se adequar a pequenos produtores e consumidores de baixo poder econômico. Não provê controle, segmentação, hierarquização e dominação nas relações de trabalho. Não desperdiça recursos. É orientada ao mercado interno de massa. Incentiva o potencial e a criatividade do produtor direto e dos usuários. Enfim, é capaz de viabilizar economicamente empreendimentos como cooperativas populares, incubadoras e pequenas empresas. “O conceito de desenvolvimento que consideramos precisa ter incorporada a dimensão do humano, porque deve estar voltado para as pessoas; precisa ser social por ser dirigido à maioria das pessoas e precisa ser sustentável para manter o compromisso com as gerações futuras”, define a secretária executiva da Rede de Tecnologias Sociais (RTS), Larissa Barros. “Todo projeto tecnológico é eminentemente político. É construído incorporando valores e interesses. Havia necessidade de um enfoque tecnológico para a questão da inclusão social. As tecnologias surgiram para atender prioritariamente às necessidades de, por exemplo, cooperativas populares, associações de trabalhadores e fábricas recuperadas.” De acordo com Larissa, o eixo da tecnologia social é a reaplicação. Em vez de apenas copiada, ela precisa ser reaplicada, para ser recriada, a cada vez que é adotada por diferentes atores.
Durante a cerimônia de entrega da quinta edição do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, no final de novembro, o presidente da FBB, Jacques Pena, observou que o Brasil é um país rico, mas sua história construiu uma sociedade desigual. “As tecnologias sociais podem ajudar a construir um país diferente”, disse. Oito anos atrás, havia 30 instituições de apoio a tecnologias sociais. Hoje são 800, a maior parte formada por ONGs. Integram o grupo de apoiadores também ministérios, governos estaduais, prefeituras, universidades e empresas públicas. A RTS é mantida por nove instituições que mais intensamente identificam e apoiam soluções de impacto: os Ministérios do Desenvolvimento Social, da Integração, do Trabalho e da Ciência e Tecnologia, além da Fundação Banco do Brasil, Sebrae, Petrobras, Caixa Econômica Federal e Finep. Dentre as tecnologias sociais, o projeto Pais e o sistema de captação de água de chuva, do semiárido brasileiro, são os mais reaplicados e os mais transformadores. “O Pais está próximo de ser convertido em política pública e o outro sistema já virou”, observa a secretária executiva da rede. A RTS organiza para o mês de maio a quarta edição da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. O objetivo é reunir pessoas e instituições envolvidas no tema e discutir uma política de Estado para os próximos dez anos. Ou seja, garantir que o estímulo à difusão da tecnologia social não oscile ao sabor das mudanças de governo. De acordo com Larissa, já é altamente positivo o fato de a “tecnologia para a inclusão social” ser um dos eixos temáticos do evento. “Porém, o sistema de tecnologia ainda não reconhece as iniciativas sociais, mas apenas as que saem das empresas e universidades. Daí a necessidade de batalhar pela participação da sociedade civil.” O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, afirmou que assuntos como utilização sustentável da biodiversidade, mudanças climáticas, energia, recursos naturais, desigualdades regionais, educação científica de qualidade, uso da ciência e tecnologia para o desenvolvimento social e saúde estarão entre os principais abordados no encontro. De acordo com o secretário-geral da conferência, Carlos Aragão, haverá abertura para inclusão de temas sugeridos pelos interessados nas cinco reuniões regionais prévias a serem realizadas no início deste ano.