Tupinambás de Belmonte lutam contra a escuridão dos serviços públicos

Quinta à noite. Chove. A escuridão cobre a aldeia Patiburi localizada no Território Indígena Tupinambá de Belmonte. Lá moram quase 200 indígenas, entre crianças, jovens, adultos e anciões. Não há energia elétrica. Nunca houve.

Dentro das casas, indígenas jantam e conversam a luz de velas e candeeiros. Na frente, fogueiras iluminam a noite.

noitealdeia200719v8.jpg noitealdeia200719v2.jpg

Foto : acervo Tupinambá de Belmonte

Os mais velhos comentam que usam óleo diesel nos candeeiros, porque as velas são muito caras no mercado local. Eles relatam preocupação quanto à segurança no seu manuseio, o risco de queimaduras, principalmente nas crianças. Além da inalação da fumaça, que prejudica a saúde.

Equipamento elétricos e eletrônicos não funcionam. As casas não têm geladeira nem televisão. Os alimentos perecíveis são guardados como antigamente: salgados. Medicamentos, como insulina, por exemplo, que precisam ficar refrigerados, são colocados em “potes de água” para manter o frescor.

aguainsulina.png
Foto: recipiente de água, que é também usado como local de guardar medicamentos

Telefones não funcionam, nem celulares. A segurança local é precária. E eles têm medo.

A cacica Cátia, defensora de direitos humanos reconhecida pelo Programa Nacional de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) como pessoa em situação de risco e vulnerabilidade, comenta que “(…) como estou sob risco de morte, de noite a gente fica preocupado”.

para saber mais sobre a luta dos Tupinambá de Belmonte ler:
http://www.ciranda.net/Terra-Indigena-Tupinamba-de

http://www.ciranda.net/Tupinamba-de-Belmonte-obtem-nova

A água consumida vem da cacimba e é armazenada em potes de barro, mas “não é adequada ao consumo humano”, diz a cacica Cátia. O poço artesiano furado pela SESAI não funciona pela falta de energia. Isso faz com doenças de veículos hídrica como esquistossomose ocorram na aldeia. Nos últimos anos vários casos de esquistossomose ocorreram, incluindo quatro mortes.

cisterna.jpg
foto: cacimba, acervo Tupinambá de Belmonte

O posto da saúde na aldeia encontra-se em situação precária. Os equipamentos encaminhados pelo Serviço Médico Indígena encontram-se desmontados e sem possibilidade de uso.

A escola local, multiseriada, atende as crianças da aldeia que cursam do 1º ao 5º ano. O prédio, além de precário, também não tem energia.

materialsemenergiaaldeiapatiburi190719v4.jpg
Foto: escola indígena – Aldeia Patiburi – acervo Tupinambá de Belmonte

A falta de energia elétrica impacta, ainda, na geração de renda e sustentabilidade dos indígenas. A produção orgânica e artesanal de cacau e mandioca não pode ser processada localmente, pois os equipamentos não funcionam. A cacica Cátia comenta que

“tudo isso dá um desgaste na gente. Que é você trabalhar, mas não conseguir produzir. Não ter avanço na produção por conta da falta de energia, porque você não consegue ter um equipamento adequado, que você não tem um beneficiamento na amêndoa do cacau, que pode agregar valor para a comunidade. Você não tem um avanço na produção de farinha, porque você não pode usar o equipamento para produzir uma farinha com uma qualidade melhor ainda. Isso é geração de renda, isso é auto-estima. E nada disso nós podemos contar ainda, por conta da falta de energia elétrica”.

Na safra 2017/2018 o Território Indígena Tupinambá de Belmonte produziu 70 toneladas de mandioca orgânica. Como não há energia, não puderam processar a farinha de mandioca. E a casa de farinha vizinha, localizada no Distrito a cerca de 16km de distância e que normalmente os auxiliava, não dispôs o espaço para o processamento da farinha. O resultado foi a perda total da safra. O que deixou os indígenas em situação bastante precária. Algumas famílias que tinham solicitado recursos do PRONAF não puderam honrar seus compromissos. Houve falta de alimentos, bem como de insumos para sobrevivência.

A situação ficou muito grave. Os indígenas pediram ajuda à Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos (SJDHDS) que os atendeu e apoiou. A SJDHDS providenciou alimentos emergenciais para a Patiburi, em virtude do bloqueio econômico. E os alimentos foram entregues, ajudando a comunidade a resistir à crise de subsistência.

Na safra 2018/2019, colhida em meados de maio de 2019, a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos intermediou conversas entre a cacica Cátia e diversos atores da cadeia produtiva estadual. Com isso, os Tupinambá de Belmonte puderam processar a mandioca e vender a farinha, bem como o cacau produzido.

A precária situação da Cacica Cátia e dos Tupinambá de Belmonte foi motivo de denúncia junto ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). A denúncia motivou uma visita do Conselho ao Território Indígena Tupinambá de Belmonte entre os dias 15 e 17 de abril de 2019. Lá a equipe realizou audiência com os indígenas, onde foram apresentados os andamentos das ações judiciais e inquéritos policiais. Os indígenas apontaram como problemas: falta de segurança, falta de energia elétrica após a derrubada de 14 postes na região e impossibilidade de escoamento a produção.

cndhf2.jpg cndhf3.jpg
Fotos: CNDH, 2019

Integraram a missão do CNDH ao sul da Bahia a vice-presidente do conselho, Deborah Duprat, as conselheiras Sandra Carvalho e Márcia Teixeira, o conselheiro Herbert Barros, a representante da secretaria-executiva do CNDH, Elisa Colares, além de Paulo Maldos (Conselho Federal de Psicologia), Vladimir Correia (Defensoria Pública da União), Ailson Machado(Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial-MMFDH), Antonio Francisco Neto e Alessandra Pereira (ambos do Comitê de Defensores de Direitos Humanos).

DPU
A Defensoria Pública da União (DPU) passou a acompanhar a comunidade Tupinambá de Belmonte a missão do CNDH, em abril de 2019. O Defensor Regional de Direitos Humanos DPU-BA, Dr. Vladimir Ferreira Correia, que participou da missão do CNDH, segue no caso. Ele explicou que constataram os problemas que os Tupinambá de Belmonte sofrem e a “violência muito grande por parte dos proprietários rurais locais, os fazendeiros, um conflito fundiário gravíssimo. Nos identificamos 4 processos judiciais, ações possessórias contra a comunidade. Passamos a atuar em todos. Alguns processos em outras instâncias também, processos movidos pelos fazendeiros locais, donos de propriedades limítrofes as terras. Nós passamos a atuar em todos eles. E fazer a defesa da comunidade.”

Correia comentou ainda que a DPU passou “a assistir e prestar assessoria jurídica, acompanhar a comunidade por exemplo, quando foi fazer representação na polícia federal em relação incêndio que ocorreu recentemente na região. Enfim, estamos dando toda a assistência jurídica a Cacica Cátia e a comunidade.”

A Funai segue a situação. Realiza acompanhamento institucional e o apoio à comunidade, com logística, articulação interinstitucional e defesa jurídica por meio da Procuradoria Federal junto à Funai.

A Comissão de Direitos Humanos da OAB -BA acompanha o caso.

Já a Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia procurada pela reportagem, informou que se solidariza com a luta da Cacica Cátia e destacou que “nunca foi e não é fácil ser uma defensora dos Direitos Humanos, ainda mais num contexto que estamos vivendo e num país com o terrível histórico de atrocidades com a população indígena.” (Neusa Cadore – Deputada Estadual PT/BA – Presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia)

Desdobramentos da Missão do Conselho Nacional de Direitos Humanos

Em quatro de julho de 2019, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) expediu oficio nº OFÍCIO Nº 1723/2019/CNDH/SNPG/MMFDH à Procuradoria da República do Município de Eunápolis destacando recomendações urgentes em relação aos Tupinambá de Belmonte. Foram elas: garantir a “implementação do fornecimento dos serviços da Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia – Coelba por meio da retomada da obra de instalação de energia elétrica à Terra Indígena Tupinambá de Belmonte, tendo em vista tal serviço constar como essencial para a garanta da segurança da comunicada, bem como o fornecimento e produção de alimentos, minorando assim a grave situação de violação de Direitos Humanos em que se encontram. ” Além disso, solicitou informações no prazo de 30 (trinta) dias, sobre as ações adotadas para implementação das recomendações ou sobre impossibilidade de fazê-lo. “

sei_mdh_-_0835627_-_oficio_mpf_eunapolis.pdf: Oficio recomendações urgentes CNDH

No mesmo dia, quatro de julho, a SJDHDS-BA encaminhou oficio ao MPF solicitando respeitosamente que MPF atuasse urgentemente “de forma a garantir o fornecimento de energia elétrica à Terra Indígena Tupinambá de Belmonte evitando o agravamento da situação de violação de Direitos Humanos e minorando o risco de vida que caracteriza atualmente a situação da Cacica Cátia e seus entes”.

A Secretaria também informou que estava à disposição para somar forças institucionais com vistas a promoção da articulação com a Secretaria de Segurança Pública para apoiar a equipe da Coelba que for finalizar as obras e efetivar o fornecimento de energia, com escolta policial durante seus trabalhos.

oficio_sudh_22-2019.pdf: oficio SJDHDS

No dia 5 de julho, a Cacica Cátia escoltada pela Policia Militar Baiana e acompanhada pela SJDHDS participou de reunião de urgência em Teixeira de Freitas, com o Procurador da República substituto – Dr. André Luís Castro Caselli, que substituiu Dr. Zelada em suas férias.

Na reunião, a Cacica Cátia apresentou a situação da aldeia Patiburi e destacou o acirramento dos conflitos. Também foram levados, em mãos, a recomendação do CNDH e o oficio da SJDHS, junto com documentação do caso, incluindo as decisões vitoriosas dos Tupinambás no TRF1 e STF. Como resultado da reunião o Dr. André Luís informou que iria entrar em contato com a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e com o Procurador Regional Dr. Felício Pontes.

Em 09 de julho de 2019 a DPU-BA enviou o oficio DPU/BA DRDH Nº 30/2019 – PAJ Nº 2019/014-01601 recomendando à “Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia- Coelba efetive o fornecimento de energia elétrica à Terra Indígena Tupinambá de Belmonte, com a urgência que o caso requer.” E destacando que se “caso a prestação do serviço seja dificultada ou impedida pelos proprietários ou funcionários das propriedades rurais adjacentes à Terra Indígena, solicita-se desta Companhia que articule com a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia escolta policial para garantir a segurança da equipe e a realização dos trabalhos”. Além disso, solicitou resposta no prazo de 10 dias.

30_-_paj_201901401601_-coelba-_tupinambas.pdf anexo: oficio DPU

Em 19 de julho de 2019, o MPF-BA encaminhou, também, à Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia- Coelba recomendação nº 014/2019 relativa ao ICP nº 1.14.010.000035/2017-35. Nela indicou à “Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia- Coelba que proceda à instalação de energia elétrica na Aldeia Patiburi, localizada no município de Belmonte, tendo em vista tratar-se de área da União, tradicionalmente pertencente à referida comunidade, de modo que os títulos de propriedade particulares nela incidentes são nulos, inexistindo, portanto, óbice jurídico para a instalação da rede elétrica na referida aldeia”. E solicitou envio de informações no prazo de 10 (dez) dias.

recomendacao_14_2019-energia_coelba_tupinambas_de_belmonte_mudanca_de_entendimento_.pdf anexo: recomendação MPF

Na mesma sexta-feira, dia 19 de julho de 2019, questionada pela reportagem, a Coelba se pronunciou:
“Em resposta à solicitação de informações sobre obra de energização da Aldeia Patiburi, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Belmonte, a Coelba informa que as obras de realização do projeto X-0460952 para implantação de rede elétrica no local precisou ser suspensa em razão da proibição de entrada de equipes da concessionária, decorrência de uma discussão acerca da propriedade do terreno. Nesta sexta-feira (19/07), a Coelba recebeu a recomendação do Ministério Público Federal que garante a segurança jurídica para atuação da empresa, o que permitirá a retorno das obras para levar energia até a Aldeia Patiburi”.

Já a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia, ouvida pela reportagem, informou que acompanha de perto a situação da Cacica Cátia, buscando apoiar as demandas desse povo originário. Destacou que a Cacica é integrante do programação de proteção aos Defensores de Direitos Humanos executado na Bahia pela própria SJDHDS.

Reforçou que entende que o “serviço de fornecimento de luz é uma garantia constitucional, um direito que não pode ser negado aos Tupinambás de Belmonte e, por isso, segue acompanhando a situação com afinco, articulando reuniões, enviando ofícios e mobilizando órgãos e autoridades competentes para solucionar o problema.”

Comentou também que a Secretaria “já esteve na 6ª Câmara do MPF, em Brasília, tratando da questão, por mais de uma vez, além de apoiar a Cacica e a Aldeia Patiburi em reuniões com procuradores e servidores da Funai em Brasília, tendo sempre como questão prioritária e urgente a falta de fornecimento de energia elétrica na aldeia.”
E também acompanhou e apoiou a missão do CNDH ao Território Tupinambá de Belmonte, ocorrida no primeiro semestre deste ano, inclusive para que a missão tivesse escolta policial ao entrar no local do conflito fundiário.

Por fim, a secretaria reiterou à reportagem “o seu total comprometimento com a população indígena da Bahia, reafirma que não deixará de cobrar e buscar a resolução da questão” e que “seguirá buscando uma solução e não deixa de somar esforços em prol da garantia, defesa e promoção dos direitos humanos.”

clique na figura para ampliar:

linha_tempo2.png
linha do tempo

Após tantos anos, os indígenas continuam esperando. Aguardam ansiosamente pela energia. Eles comentam que os desdobramentos da missão do CNDH deram alento.

A movimentação ocorrida durante o mês de julho de 2019 trouxe expectativas muito positivas, falou a Cacica Cátia, em especial, com o reforço das recomendações da Defensoria Pública da União e do Ministério Público Federal.

A cacica fez questão de destacar que “a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social tem se empenhado em nessa e em outras situações de violação que sofremos”. Ela reconhece que houve um grande empenho por parte da Secretaria, do Secretário, do Superintendente e da Coordenação Indígena para que a energia possa chegar em Patiburi. E agradece”.

Hoje, terça-feira, dia 23 de julho de 2019, um técnico da Coelba foi ao Território Indígena Tupinambá de Belmonte avaliar a situação e analisar como avançar na obra.

Esperemos.

riojequitinhonhaluzaldeia.jpg
foto: Rio Jequitinhonha, passando pelo Território Indígena Tupinambá de Belmonte. Acervo Tupinambá de Belmonte

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *