Se a flor de liz fosse macumbeira

No filme ‘‘Jardim das Folhas Sagradas’’, quando o personagem Miguel Bonfim é alvo das agressões em sua própria casa, patrocinada por sua companheira e uma tropa de ‘’irmãs’’, por meio dos insultos que são usuais de certos neopentecostais racistas e intolerantes, tal cena me remete as situações que engoli ‘‘a seco’’ alguns comentários, seja para evitar uma discussão ou para simplesmente ‘‘deixa quieto’’.

Eu não escolho com quem me relacionar, contudo, admito que é bem difícil um candomblecista ‘‘ficar’’ duradouramente com um neopentecostal raiz.

Certa feita, uma menina crente ‘‘deu um pulo’’ quando disse que sou do Candomblé; me senti um ex-presidiário que cumpriu pena por ter esquartejado minha companheira a la ‘‘Chico Picadinho’’. Mas como ‘‘fogo’’ não tem partido, time ou religião… ‘‘gruvou’’, como se diz aqui em Salvador.

Não satisfeita, a pessoa me questiona, depois do ‘‘groove’’, sobre um ritual, que supostamente fazemos, para tirar os ‘‘levitas’’ – pessoas que cantam na igreja evangélica – da ‘‘presença de Deus’’, no caso, do caminho virtuoso julgado por eles.

Por exemplo, uma vida sem sexo antes do casamento – aquela história do ‘‘eu resolvi esperar’’, que às vezes não funciona -, uma pena, pois sexo é uma das melhores coisas para se fazer enquanto se esta vivo.

Mas, voltando… temos uma pergunta tão cretina, quanto absurda, pelo racismo e desinformação que traz nas suas entranhas. Aí fica estreito ‘‘gruvar’’… Por isso que é difícil.

Veja a situação: a gente que é do axé vai se preocupar se fulano evangélico quer ou não transar, e para isso vamos gastar dinheiro com ebó, para que ele ‘‘caia no pecado’’, ou seja, a gente não tem o que fazer. É cada uma, viu?…

‘‘Candomblé do mal e do bem’’ é uma classificação de ‘‘bem-intencionados’’ que acham linda a religião, mas contribui como um ariokô da pior espécie, com o racismo e uma rede desinformação, que alimenta um repertório de difamações sobre as religiões de matriz africana.

Por outro lado, o que seria o cristianismo do mal?

Seria a dos padres pedófilos acobertados pelo Vaticano? Ou aquele que sustentou o genocídio dos povos tradicionais no período colonial? Ou ainda das pastoras e pastores empresários, que enriqueceram na fé e são donos de televisão, rádios… e que extorquem um povo miserável, vendendo feijão por mil reais para a cura da Covid-19 – o feijão daquele tipo cauboi cafona -, por exemplo?

Ou ainda aquele de médiuns espiritualistas que estupram mulheres que buscam uma cura?

É a religião que impediu Zé do Burro de pagar a sua promessa para Iansã na igreja católica? Ou a que condena pessoas trans e homossexuais? Ou ainda a que criminaliza uma criança estuprada e grávida?

Ou aquela que apedreja adeptos do Candomblé e da Umbanda na rua? Incendeia e depreda as casas de culto, os espaços sagrados, em nome de Jesus, e se une a ‘’traficantes de Cristo’’ para expulsar Babalorixás e Ialorixás de suas residências debaixo de bala e porrada, residências que são também locais de celebração religiosa?

Eu prefiro o cristianismo do bem, é claro. O do padre Júlio Lancelotti, da Teologia da libertação de Leonardo Boff, do franciscanismo do Papa ‘‘Chiquinho’’, ao contrário da ostentação de Ratzinger. O cristianismo de líderes religiosos que se humanizam em suas dores, tal como o Cristo na via crucis. O que tem a tolerância e o respeito às diferenças presentes nas condutas dos pastores Henrique Vieira e Kleber Lucas. Da Pastoral Carcerária, da Terra, da Juventude, das Comunidades Eclesiais de Base…
O pastor Kleber Lucas, inclusive, contribuiu para reconstrução de um terreiro de Candomblé que fora incendiado, e por isso foi condenado por alguns que se dizem cristãos.

O cristianismo do bem do nosso sincretismo baiano, que eu Ogan, raspado, catulado, registrado e dado nome na praça, reverencio ao meu Senhor do Bonfim. ‘‘Gloria a ti nessa altura sagrada, gloria ti redentor que há cem anos, nossos pais conduziste à vitória pelos mares e campos baianos’’.

Inclusive estou em falta como o Redentor da Bahia, mas este ano suba a Colina Sagrada para pagar minha promessa.

Não existe Candomblé ou cristianismo do mal. O que existe são pessoas homofóbicas, racistas, marginais, que usam o discurso religioso para canalizar o seu desvio de caráter e cometer seus crimes.

Mas em relação ao Candomblé, uma religião formada por indivíduos humanos que erram, além da difamação histórica que sofremos – rituais satânicos, sacrifícios humanos e outras lendas medievais – estamos sob alvo constante de um patrulhamento, voltado a apontar e condenar o povo de axé.

Só que tem um detalhe: resistimos até aqui a muita perseguição, extermínio e epistemicídio. É difícil nos derrotar, temos um panteão de divindades que nos sustentam.

Ah, e antes que eu esqueça… ainda bem que Flor de Liz, não é macumbeira, já pensou?

Imagem: Catolicismoxcandomble

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