Rompimento

Como conciliar a necessidade de reduzir o consumo, para atenuar a marcha do aquecimento global, com a necessidade de suprir os mais pobres dos bens materiais que lhes garantam boa qualidade de vida? Como fazê-lo por meio de uma economia includente e redistributiva, de baixo impacto ambiental e que permita o cumprimento das metas de redução da emissão dos gases do efeito estufa?

Não parece necessário discorrer mais nem uma palavra para atingir o objetivo deste simplório artigo.

Mas são poucos os virtuosos que sabem se calar. Os que assim se comportam no cinema noir têm um charme invejável. Imagine: só falar o essencial, insinuar a incógnita, a reticência, olhares furtivos, gestos comedidos…

Nossas culturas são o avesso disso. Somos falantes. Muitas vezes nos deixamos extrapolar com vivacidade. Ora nos importamos com o ridículo, ora nem consideramos tal possibilidade. Podemos nos divertir com a síntese, a concisão. Alguém diria: – Fale por si! Outros defenderiam: – Podemos ser tagarelas, expansivos e exagerados. Que mal tem, ganhando mal ou bem?

Cedo.

Voltando à pergunta do século e citando as orientações postadas por Eliane Brum para estas eleições municipais de 2020, quando nos recomendou votarmos como se nosso irmão fosse gay, nosso lar estivesse em chamas, nossa pele não fosse branca, nosso bairro estivesse inundado, nosso filho fosse transgênero, nosso cônjuge fosse imigrante, nossos pais precisassem de cuidados médicos, nossa irmã fosse uma indígena desaparecida, nossa água não fosse segura para beber, nosso filho fosse vítima de bala perdida, nossa filha fosse vítima de estupro.

A misteriosa empatia. Consigo sentir o que você sente? Posso sentir a dor e a delícia de ser como é? Consigo lançar minha projeção, me concentrar, transmutar, para me colocar no seu lugar, ou isso é pura ilusão?

Imagino-me na caatinga, o ambiente se transformando num deserto árido, aumenta minha dificuldade na criação de animais, a cisterna seca rápido, a biodiversidade reduzida, até a palma demora a crescer. Não há perspectiva de uma reviravolta na mudança climática.(sugiro “Flora”, de Gilberto Gil, como trilha sonora)

Agora sou do subúrbio ferroviário em Salvador, é notável o contraste da pobreza com a beleza do lugar. As casas mais próximas ao mar estão sendo destruídas pela maré exorbitando agressivamente. Está chegando nossa vez, perderemos as casas e o terreno da família, não há o que fazer.

Vivo de uma agrofloresta tropical, mantenho a mata em pé, enriqueço a vegetação com espécies alimentícias para humanos e animais, para madeira e lenha, para remédios e cosméticos. Presto serviços ambientais, minha vida e meu trabalho retiram carbono da atmosfera.

Mas nenhum de nós tem mais do que o básico. Carecemos de serviços públicos, precisamos ser muito melhor remunerados pelo trabalho que executamos para garantir, ao menos, o direito de nos deslocarmos, de mantermos uma boa casa, boa escola, boas roupas, boa comunicação, bom acesso às artes e boa saúde.

Não dá pra fazer milagre. Sob o ponto de vista da pegada em emissões de carbono, para que a parte mais pobre da população do planeta tenha garantia de acesso aos bens acima elencados, a parte mais rica deverá reduzir drasticamente o consumo de supérfluos, seus excessos, suas exclusividades VIPs, seus caprichos. Para desacelerar o colapso ambiental, interromper a marcha para o abismo da mudança climática e, ao mesmo tempo, garantir o básico para os que mais precisam, será necessário romper com o atual modelo. Vamos discutir quais as mudanças deverão ser obrigatórias, caso desejemos um futuro comum?

Além disso, no caso do Brasil, é bom lembrar o tempo todo: é crime de lesa humanidade continuar os desmatamentos e queimadas florestais, sejam autorizados ou não. Por esse motivo, somos destacados contribuintes de emissões de carbono na atmosfera do nosso planeta, o único que se tem notícia de oferecer condições adequadas aos seres vivos. Não se sabe ainda por quanto tempo.

José Augusto de Castro Tosato
Salvador/BA, 23/11/2020

imagem:

Artigos assinados não expressam necessariamente a opinião da Ciranda e são da responsabilidade de seus autores(as).

leia todos os artigos

José Augusto de Castro Tosato

Música : Flora
DVD BandaDois
música: Flora
autor: Gilberto Gil

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *