Reforma Administrativa e os Empecilhos à Liberdade Associativa e Sindical no Setor Público Brasileiro

Neste último artigo da série sobre fundamentos e diretrizes da ocupação no setor público brasileiro, vamos tratar da liberdade de organização e autonomia de atuação sindical.

Apesar de mencionar os direitos de livre associação sindical e de greve na administração pública (este último pendente de regulamentação em lei específica), a Constituição de 1988 não assegurou explicitamente o direito de negociação coletiva. Isso criou um vácuo jurídico nas relações trabalhistas entre os servidores e o Estado, embora a Lei 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores federais, preveja garantias para o exercício da atividade sindical e aluda à negociação coletiva. Além disso, vigora no país, desde março de 2013, a Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata do tema.

Esse vácuo normativo ensejou constantes dificuldades e tensões na relação entre governos e servidores. Entretanto, a vigência de um ambiente mais democrático, até recentemente, favoreceu a solução dos conflitos, ainda que a custas de processos de negociação bastante morosos e de longas greves. A falta de regulamentação dos direitos de negociação e de greve do funcionalismo, portanto, não impediu o diálogo e a construção de alternativas para a solução dos conflitos trabalhistas no setor público.

Entretanto, atualmente, os espaços de diálogo e concertação, inclusive no âmbito parlamentar, se encontram fortemente limitados ou mesmo inacessíveis ao movimento sindical dos servidores. Assiste-se, com frequência, a ataques de ministros de Estado e do próprio presidente da República aos servidores, em todos os níveis da administração pública federal, inviabilizando qualquer tentativa de diálogo. Nesse contexto, a ausência de regulamentação dos direitos de negociação e de greve acirrará os conflitos entre governo e servidores, com consequências danosas para a sociedade.

Há, certamente, várias especificidades nas relações trabalhistas entre os servidores e entes públicos, que tornam mais complexa a tarefa de regulamentação do direito de greve e de negociação. Entre elas, destacam-se:

i. diferentemente da iniciativa privada, o empregador (Estado) não aufere lucros com suas atividades. Seus recursos são sempre escassos diante das necessidades da população e são objeto de disputa entre os diversos setores da sociedade, por ocasião da elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA);

ii. o Poder Público tem, constitucionalmente, o dever de observar o “princípio da legalidade”, pelo qual o Executivo só pode realizar despesas se autorizado pelo Legislativo, através da LOA. Esse princípio faz com que uma eventual negociação tenha que incorporar, necessariamente, o Parlamento, o que torna o processo de negociação no setor público muito mais complexo que na iniciativa privada;

iii. o Poder Executivo tem que observar os dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada em 2.000 (Lei Complementar 101), que prevê rígidos limites para o gasto com o funcionalismo público, que, no caso dos Estados e Municípios, não pode superar 60% da Receita Corrente Líquida e, no âmbito da União, 50% da RCL;

iv. a Emenda Constitucional 95∕2016 (Teto de Gastos) adicionou restrições às possibilidades de negociação dos servidores no tocante aos reajustes remuneratórios, ao congelar os gastos públicos por 20 anos. A chamada “EC Emergencial”, por sua vez, vem para dificultar ainda mais a negociação sobre questões que envolvam qualquer aumento de despesa;

v. a negociação coletiva no setor público requer a atuação das entidades sindicais dos servidores nos diferentes momentos do ciclo orçamentário, desde a apresentação do Plano Plurianual (PPA), passando pela apreciação da LDO e encerrando com a votação da LOA.

Cabe considerar, em qualquer proposta de regulamentação da negociação coletiva, particularmente sobre remunerações no setor público, as seguintes questões:

i. a negociação dos servidores envolve, além dos servidores e suas entidades representativas, os demais gestores públicos e diversos outros atores, entre eles, parlamentares e organizações da sociedade civil, além dos destinatários dos serviços oferecidos à população;

ii. em muitos casos, a autonomia das entidades de servidores públicos na negociação é bastante reduzida, pois os orçamentos de cada órgão são rígidos e admitem pequena margem para realocação de recursos;

iii. há disputas entre os diversos órgãos e carreiras nas diversas esferas do Poder Executivo pela apropriação da cota orçamentária relativa à remuneração, o que torna bastante complexa a elaboração de pautas comuns e formação de consensos políticos. A pulverização de interesses e demandas entre categorias e entidades representativas dificulta a unificação dos processos de negociação e mobilização. Portanto, o instituto da data-base existente na negociação coletiva dos trabalhadores na iniciativa privada dificilmente se aplicaria à realidade dos servidores. E, de fato, a ela não se aplica.

Segundo Vieira Jr. (2013), em estudo fundamental sobre a regulamentação do direito de negociação coletiva no setor público, “a negociação coletiva pura, transportada da experiência trabalhista privada, é inconstitucional quando aplicada ao setor público.”

No setor privado, empregados e empregadores possuem mais liberdade para definir os parâmetros do acordo resultante, pois o objetivo do negócio empresarial é a obtenção de lucro – que pode ser “distribuído” entre os empregados conforme a situação econômica e financeira da empresa – e a capacidade de pressão dos sindicatos e trabalhadores. A Reforma Trabalhista de 2017, inclusive, permite que os acordos prevaleçam sobre a lei, ainda que prevejam condições menos favoráveis.

Em relação ao direito de greve, as especificidades se relacionam basicamente às noções de “atividades essenciais” e “necessidades inadiáveis”. Em se tratando de serviços prestados e atividades realizadas pelo Estado, pode-se dizer, em tese, que quase todos se encaixam nessas noções. Os que criticam esse direito baseiam-se na visão estreita de que uma greve de servidores entraria em conflito com a própria missão do setor público para com a sociedade. Entretanto, a Constituição Federal de 1988 estendeu esse direito aos servidores, deixando sua regulamentação para lei ordinária, até hoje não regulamentada.

De acordo com Vieira Jr. (2013): “

Não é razoável supor que a CF tenha admitido, expressamente, o direito à livre associação sindical dos servidores, em seu art. 37, inciso VI, o direito de greve no inciso VII do mesmo artigo, e não tenha admitido a negociação coletiva, obedecidas as balizas constitucionais. Fosse verdadeira essa construção, estaria desmontado o clássico eixo que sustenta as relações trabalhistas, e, por extensão, as relações jurídico-estatutárias, composto por: livre organização sindical, negociação coletiva e direito de greve. É imperiosa, portanto, a construção de base normativa que: i) reafirme a possibilidade de livre organização dos servidores para reivindicar o que consideram seus direitos; ii) crie espaço possível de negociação, submetido aos limites constitucionais e legais; e, por fim, iii) viabilize o exercício do direito de greve, na hipótese de as negociações resultarem infrutíferas.”

Tendo em vista a regulamentação do direito de greve, entretanto, cabem muitas reservas quanto ao projeto mais recente (375/2018) que claramente restringe e constrange seu exercício pelos servidores. Trata-se de matéria extremamente complexa e sensível que deve considerar, ao mesmo tempo, o legítimo exercício de um direito constitucional – indissociável, tanto do direito de negociação coletiva, como da mais ampla liberdade de organização sindical –, bem como as necessidades da sociedade em relação aos serviços prestados pelo Estado que são financiados por ela por meio de impostos. O Projeto de Lei 375/2018, infelizmente, não contempla essas premissas e contém indisfarçável viés restritivo das liberdades sindicais.

Por tais razões, a regulamentação do exercício desses direitos deveria ser objeto de um único projeto de lei, entendendo que os três estão intrinsecamente relacionados, pois, livre organização associativa e sindical, negociação coletiva e greve são aspectos centrais de um sistema democrático de relações de trabalho.

Feito isso, haverá mais previsibilidade e segurança em relação à evolução dos gastos com a folha de pagamentos, evitar-se-á a cristalização de “castas funcionais” em detrimento da melhoria das condições de vida e trabalho da ampla maioria dos servidores, haverá maior e melhor sinalização à sociedade em termos de uma gestão profissional e transparente dos recursos humanos no setor público, reduzir-se-á a conflitividade das relações de trabalho entre Estado e servidores e os custos sociais de greves que poderão ser evitadas pela existência de negociações coletivas permanentes.

Referências
Vieira Junior, R. J. A. A constitucionalidade da negociação coletiva no setor público brasileiro. Textos para Discussão 135 Agosto/2013. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa.

imagem: ciranda.net

José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.

Regina Coeli Moreira Camargos é Bacharel em Ciências Econômicas pela FACE/UFMG (1987), doutora em Ciência Política pela FAFICH/ UFMG (2008), pesquisadora em pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico no CESIT/IE/ Unicamp. Foi economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) entre 1993 e 2018. Autora do livro “Negociação Coletiva: trajetória e desafios” – Ed. RTM, Belo Horizonte, 2009.

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