Da mesma maneira que as questões da estabilidade e da remuneração, ambas tratadas em artigos anteriores nessa mesma série, também agora, no caso da qualificação profissional e da capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações públicas, as propostas liberais-gerencialistas aparecem como insatisfatórias e contraproducentes ao bom desempenho pessoal e agregado do setor público.
No setor público, devido tanto à amplitude de temas ou novas e inescapáveis áreas programáticas de atuação governamental, como à complexidade das mesmas em contextos de heterogeneização global e acirramentos nacionais e regionais crescentes, qualificação elevada desde o início nas carreiras e processo contínuo de capacitação pessoal e organizacional são exigências do mundo atual aos Estados nacionais soberanos.
Ambas as exigências – qualificação elevada desde o início nas carreiras e processo contínuo de capacitação pessoal e organizacional – colocam desafios imensos às políticas públicas de pessoal e sugerem atrelamento de fases e tratamento orgânico aos novos servidores desde a seleção por concurso, trilhas de capacitação e alocação funcional que combinem as vocações e interesses individuais com as exigências organizacionais de profissionalização da função pública, passando ainda pelas dimensões da progressão na carreira, da remuneração adequada e previsível em cada nível, dos critérios e condições de acompanhamento e avaliação, até o momento da aposentação.
Tal política de pessoal no setor público, porque abrangente e complexa, apenas pode ser realizada sob a égide de abordagens holísticas, visando formar servidores críticos e conscientes da realidade brasileira em suas diversas dimensões. O aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional agregado do setor público será resultado desse trabalho custoso e permanente de profissionalização da burocracia pública. Algo muito distinto da lógica liberal-gerencialista que prima pela oferta de incentivos (e punições) individuais à capacitação do servidor, induzindo-o a um processo de especialização acrítica e a uma lógica concorrencial nefasta de progressão funcional na carreira.
Diante do exposto, entende-se melhor porque é que a ocupação no setor público veio, historicamente, adotando e assumindo a forma meritocrática como critério fundamental de seleção e acesso, mediante concursos públicos obrigatórios e exigentes, sob a guarida de um regime estatutário e jurídico único (RJU), como no caso brasileiro desde a CF-1988. Sabemos, não obstante, que o critério weberiano-meritocrático de seleção de quadros permanentes e bem capacitados (técnica, emocional e moralmente) para o Estado depende de condições objetivas ainda longe das realmente vigentes no Brasil, quais sejam: ambiente geral de homogeneidade socioeconômica, republicanismo político e democracia social.
O ambiente geral de homogeneidade econômica e social é condição necessária para permitir que todas as pessoas aptas e interessadas em adentrar e trilhar uma carreira pública qualquer, possam disputar, em máxima igualdade possível de condições, as vagas disponíveis mediante concursos públicos, plenamente abertos e acessíveis a todas elas.
Por sua vez, o republicanismo político e a democracia social implicam o estabelecimento de plenas e igualitárias informações e condições de acesso e disputa, não sendo concebível nenhum tipo de direcionamento partidário ou político-ideológico nem favorecimento pessoal algum, exceto para aqueles casos (como as cotas para pessoas portadoras de deficiências ou necessidades especiais, e as cotas para gênero e raça) em que o objetivo é justamente compensar a ausência ou precariedade histórica de homogeneidade econômica e social entre os candidatos a cargos públicos.
Em outras palavras: o mérito, como critério primordial de seleção e ocupação de cargos públicos, só pode cumprir plenamente o seu papel precípuo de filtrar os melhores ou mais aptos (dos pontos de vista técnico, emocional e moral), se estiver assentado em condições de máxima homogeneidade econômica e social possível entre os cidadãos concorrentes em qualquer processo seletivo ou concurso público. De outra maneira, quanto mais heterogênea e desigual forem as condições econômicas e sociais de uma dada população, mais os processos ditos meritocráticos tenderão a sacramentar – ou até mesmo ampliar – as desigualdades e heterogeneidades previamente existentes nessa sociedade.
Tal como afirma João Soares (O Mito da Meritocracia: a piada que se transformou num dogma, em 14 de janeiro de 2020):
“(…) ser filho de pessoas bem sucedidas influencia o nosso futuro sucesso de duas formas: os genes que herdamos e o ambiente familiar e socioeconômico em que somos criados. Dado que ninguém escolhe o seu próprio genoma, não estou a ver onde está o mérito disso. E como ninguém escolhe a família onde nasce – se rica ou se pobre, com bom ou mau aporte nutricional, se bem conectada em termos sociais ou nem por isso, se numa família estruturada ou não – também não me parece que seja possível atribuir o nosso mérito a essas ocorrências.
(…) A coisa mais perversa associada a esta ideia da meritocracia, é que levou a uma corrente liberal anti-Estado. No fundo, a lógica é a seguinte: “se eu fui bem sucedido na vida à conta do meu esforço e tu não foste bem sucedido porque és um preguiçoso e não te esforçaste o suficiente, porque é que eu tenho que pagar mais impostos para te sustentar a ti?
(…) O meritocrata não é nada sem a sociedade em que a pessoa está inserida e as condições que essa sociedade lhe proporcionou para se transformar neste “Self Made Man”, super empreendedor, que enriqueceu imenso graças a uma ideia genial criada às costas de milhares de pessoas que contribuíram para que essa ideia genial pudesse ter surgido.”
Portanto, apenas diante das condições citadas acima – homogeneidade socioeconômica, republicanismo político e democracia social – é que, idealmente, o critério meritocrático conseguiria recrutar as pessoas mais adequadas (técnica, emocional e moralmente), sem viés dominante ou decisivo de renda, da posição social e/ou da herança familiar e/ou da influência política. E entende-se, finalmente, como é que, historicamente, a meritocracia tem sido utilizada como mecanismo de discriminação e injustiça, uma vez que o sucesso individual é, sempre, resultado do esforço coletivo, e do contexto econômico e social do país e do mundo. Portanto, individualizar a responsabilidade pelo resultado, mesmo em empresas privadas que usualmente assim o fazem, é uma pressão violenta que adoece e desestimula a solidariedade e a colaboração entre os seres e suas organizações.
De todo modo, mesmo operando em condições adversas, o critério meritocrático aplicado ao setor público evita, justamente, que sob qualquer tipo de comando tirânico ou despótico (ainda que “esclarecido”!), se produza qualquer tipo de partidarização ou aparelhamento absoluto do Estado. No caso brasileiro, sob as regras vigentes desde a CF-1988, há garantia total de pluralidade de formações, vocações e até mesmo de afiliações políticas, partidárias e ideológicas dentro do Estado nacional, bem como garantia plena do exercício de funções movidas pelo interesse público universal e sob controle tanto estatal-burocrático (Lei nº 8.112/1990 e controles interno e externo dos atos e procedimentos de servidores e organizações) como controle social direto, por meio, por exemplo, da Lei de Acesso a Informações (LAI), entre outros mecanismos.
Ou seja, nos regramentos já existentes para delimitação da ocupação no serviço público, estão previstas possibilidades de avaliação e de monitoramento da atividade do agente público, além da aplicação de um amplo rol de sanções administrativo-disciplinares, que podem culminar com a expulsão de servidores estatutários da administração pública federal, em amplo espectro.
Entre 2003 e julho de 2019 foram contabilizadas 7.588 punições expulsivas aplicadas a servidores estatutários do Poder Executivo Federal, cerca de 500 ao ano. Quanto às suas fundamentações, 64% dessas expulsões devem-se a atos relacionados à corrupção; 26% por abandono de cargo, inassiduidade ou acumulação ilícita de cargos; os demais 10% estão divididos entre desídia (3%), participação em gerência ou administração de empresas (1%) e ainda outras razões e motivos variados (6%).
No próximo artigo, trataremos da questão relativa à cooperação – ao invés da competição – interpessoal e intra/inter organizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público.
imagem: ciranda.net (Cartum Blog Pedro Tocantins)
José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.
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