A proposta de reforma da previdência recém encaminhada ao Congresso Nacional pelo Ministro Paulo Guedes aponta para, no mínimo, dois macro-objetivos. Em primeiro lugar tentar “equilibrar” o sistema previdenciário brasileiro e as contas públicas com uma suposta economia em 20 anos de R$ 4,5 trilhões. E, em segundo lugar, reformular o sistema previdenciário brasileiro que deixaria de ser um sistema baseado em três pilares (RGPS, RPPS e previdência complementar) para tornar-se um sistema baseado em dois pilares: um piso de benefícios mínimo e universal, de caráter público, e a previdência complementar, esta passando a ser o principal pilar de sustentação do sistema.
Impossível fazê-lo? Não. A previdência complementar não é ruim em si. Pelo contrário. Ela pode muito bem funcionar como um mecanismo de acumulação de poupança que funcione como funding a um esforço de financiamento de investimentos públicos e privados. Ampliar o esforço coletivo de capitalização de poupanças forçadas pode ser um componente essencial de uma estratégia de ampliação do nível do investimento sobre o PIB, atualmente em seus níveis mais baixos da história recente do país (14%). Criar incentivos à ampliação da poupança privada pode ser extremamente meritório nesse momento. Mas a questão é como fazê-lo.
A melhor forma de elevar o esforço de poupança é ampliá-la pari passu ao crescimento da renda. Isso vale tanto para o âmbito pessoal, onde um aumento da poupança não requereria uma diminuição do consumo, quanto para o âmbito público, onde a ampliação da poupança poderia ser feita em um momento de ampliação da arrecadação. Fazê-la em um momento de estagnação da renda significaria, no âmbito privado, uma diminuição do consumo e, para o setor público, um aumento do déficit.
A melhor forma de elevar o esforço de poupança é ampliá-la pari passu ao crescimento da renda
Na cabeça do ministro supõe-se funcionar um raciocínio baseado na hipótese de que a diminuição das despesas públicas com previdência acarretará uma espécie de efeito crowding-out às avessas. Ou seja, a diminuição dos gastos públicos abrirá espaço para a ampliação dos gastos privados sobretudo de investimento, na medida em que a diminuição inicial de gastos permitirá uma redução permanente da taxa de juros. O crescimento do investimento reconduziria o nível de renda ao seu patamar anterior, porém com uma qualidade dos gastos maior, dado ter-se trocado, em nível macroeconômico, uma despesa de transferência do setor público que se transformava em consumo por um gasto de investimento, ou seja, de ampliação do estoque de capital à disposição da sociedade.
Ainda que tal macroeconomia de manual funcionasse (algo extremamente duvidoso), há uma falha estrutural no raciocínio: os custos de transição para o regime baseado na previdência complementar fariam o déficit público subir em vez de cair, o que interromperia a sequência virtuosa do raciocínio macroeconômico implícito no projeto. Isso pelo simples motivo de que, durante o tempo necessário para que o último beneficiário atual morresse, o setor público continuaria obrigado a pagar os benefícios dos atuais segurados, porém sem arrecadar as contribuições necessárias para financiá-los, uma vez que essas estariam sendo vertidas para o regime complementar. De outro modo: é impossível imaginar a mudança do sistema de previdência para um sistema de dois pilares sem levar em conta os imensos custos de transição que tal mudança acarretaria. Alguém teria que financiar o pagamento dos benefícios daqueles que ainda estariam vivos. Quando se considera que estamos tratando de um sistema que abrange hoje aproximadamente 65 milhões de participantes, entre ativos e assistidos, o custo de transição torna-se absolutamente proibitivo.
o custo de transição torna-se absolutamente proibitivo
Implícito no delírio ultra-liberal do ministro está a hipótese de que vivemos um novo momento de ruptura na trajetória de construção política, econômica e social do país. Este seria o momento de uma ruptura social sem precedentes, a partir da qual a imensa cobertura de riscos para a base da pirâmide societária que o atual sistema de previdência social representa no Brasil poderia ser reestruturada.
O ministro sabe que não será simples levar a cabo seu projeto e que seria muito difícil fazê-lo nos marcos de uma sociedade organizada em moldes democráticos. Talvez seja exatamente isso que o ministro queira sugerir com seu projeto de laboratório: que o Brasil não cabe nos moldes de uma sociedade democrática.
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Lício da Costa Raimundo é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp e Professor de Relações Internacionais da FACAMP. Economia política internacional, estudos relacionados aos Investidores Institucionais e Economia Política são alguns dos temas aos quais tem se dedicado nos últimos anos.