PNDH 3: menos dispositivos para coibir a violência no campo

Charge: Carlos Latuff

As ameaças e intimidações começaram às 10h da manhã, quando um grupo de segurança armada chegou ao local – um acampamento de famílias Sem Terra, na Fazenda Cambará, em Santa Luzia do Pará, a 200 km da capital, Belém. Os seguranças armados com escopetas dispararam sete tiros em direção ao acampamento onde estavam 150 famílias. Além disso, bloquearam a entrada e a saída do local. Assim foi o dia todo. Por volta de 17h, chegaram as polícias civil e militar, de quatro cidades da redondeza para mediar o conflito. Segundo os Sem Terra, no entanto, eles já chegaram dispostos a expulsar as famílias do local, embora não houvesse mandado de reintegração de posse expedido para aquela situação. As autoridades policiais requentaram um mandado expedido seis meses antes e já considerado nulo pela justiça paraense. As lideranças do acampamento pediram um tempo para dialogarem e pensarem o que fazer, já que sabiam que aquele mandado era inválido. “Não vamos dar tempo. Daqui a pouco o choque está chegando. E o choque vocês sabem como é que tira vocês, então é melhor saírem logo”, respondeu o coronel da PM, segundo relato de Ulisses Manaçais, da coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pará.

Essa situação ocorreu no último dia 11 de junho. Ulisses estava no acampamento no momento do despejo e relata que, como não teve conversa, as famílias foram instruídas a tirar os pertences dos barracos e colocar no próprio caminhão da polícia. O Batalhão de Choque chegou, mas não precisou agir. As famílias seguiram em marcha até um local distante dois quilômetros da propriedade, onde se alojaram, provisoriamente, em um pequeno pedaço de terra cedido por um camponês. “Havia três mulheres grávidas, muitas crianças, eles fizeram terror o dia todo. Felizmente ninguém ficou ferido, mas criaram um clima de pânico”, denuncia Ulisses.

De acordo com as recomendações do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) , como foi publicado originalmente, esta desocupação não teria acontecido desta maneira. O Plano sugeria que antes de reintegrações de posse ocorressem audiências coletivas com os envolvidos e também com a presença do Ministério Público, poder público local, órgãos públicos especializados e polícia militar. Mas o decreto 7.177 , de 12 de maio de 2010, modificou este item do programa.

A quarta e última reportagem da série sobre as modificações no PNDH 3 discute o problema dos conflitos pela terra no Brasil e como o texto original do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos tratava o tema. Em visita à Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), onde foi convidado para proferir a aula inaugural do ano letivo, o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, comentou a reação dos latifundiários à proposta, explicando que o Plano não era uma ameaça à propriedade privada. “O que o Programa diz é que deve haver um mecanismo de mediação pacífica de conflitos, sem desrespeitar o direito à propriedade, mas sem passar pela via da criminalização”, disse.

O que mudou

A partir do decreto de 12 de maio, o texto do PNDH 3, no que se refere ao tema da mediação dos conflitos no campo, passou a vigorar com duas modificações – a expressão ‘audiências coletivas’ foi suprimida e, apesar de a mediação de conflitos continuar sendo sugerida, a prática deixou de figurar como ato inicial. O assunto é tema da ação programática ‘d’ do Objetivo estratégico VI – Acesso à justiça no campo e na cidade. O texto original sugeria: Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, priorizando a realização de audiência coletiva com os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público local, órgãos públicos especializados e Polícia Militar, como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos. Após o decreto, ficou assim: Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação nas demandas de conflitos coletivos agrários e urbanos, priorizando a oitiva do INCRA, institutos de terras estaduais, Ministério Público e outros órgãos públicos especializados, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos.

Em fevereiro de 2010, menos de dois meses após o lançamento do PNDH 3, o deputado federal Carlos Mendes Thame (PSDB/SP) apresentou quatro projetos de decreto legislativo (PDC) para tornarem nulos alguns dispositivos do plano. Um deles, o PDC 2399/2010 questiona justamente essa ação programática. “O dispositivo do PNDH-3 do Presidente Lula, cuja eficácia deve ser suspensa, afronta os princípios constitucionais de independência do Poder Judiciário e do amplo poder de cautela assegurada ao julgador, que se encontram vinculados ao princípio do juiz natural, na sistemática jurisdicional brasileira. A simples concepção de instaurar-se, como estágio preliminar para a solução de demandas e conflitos agrários e urbanos, a mediação obrigatória, constitui-se em ato emasculatório do Poder Judiciário”, disse Mendes Thame, na justificativa do projeto. Segundo o deputado, o dispositivo tem uma função “castradora” do poder judiciário. “O enunciado é muito claro em seus objetivos: institucionalizar a mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, denotando claramente o propósito de subverter a ordem jurídica e seus princípios basilares, inclusive com grave prejuízo à celeridade processual e para a pacificação da conflituosidade social”, completa Thame.

O presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), o juiz Luiz Fernando Barros Vidal, discorda que o dispositivo previsto no PNDH 3 afronta os princípios constitucionais. Para ele, por trás deste argumento, se esconde um discurso reacionário. “Invocaram uma autonomia e independência do poder judiciário, na verdade, para justificar um comportamento reacionário. Não há nada de inconstitucional em você sugerir ao juiz que faça audiência”, diz.

Luiz Fernando completa que, mesmo sem este dispositivo no PNDH 3, é plenamente possível aos juízes realizarem audiências antes de tomarem decisões como a de conceder uma liminar para reintegração de posse, por exemplo. Ele explica que o código de processo civil permite ao juiz agir desta maneira e que, portanto, o Plano não apresentou nada inédito, apesar de ser importante este item estar expresso na publicação. “Se eu quiser fazer uma audiência para ouvir as pessoas, eu faço, não precisa de lei para isso. Vários juízes já tiveram esse cuidado de chamar os envolvidos, sentar, conversar. Todas estas críticas serviram, na verdade, para uma tentativa maldosa de desqualificar o Plano e o ministro, algo de má fé”, observa.

A reportagem procurou o deputado Mendes Thame, mas, por meio de sua assessoria, ele informou que está de licença médica, e que, portanto, não poderia responder à entrevista. Entretanto, a assessoria de imprensa do deputado adiantou que o projeto de decreto legislativo 2399/2010 perde o objetivo com as mudanças realizadas pelo governo federal no plano, por meio do decreto 7.177, de 2010.

Por que realizar audiências coletivas?

Como já informou a primeira reportagem desta série, um conjunto de movimentos lançaram uma campanha pela integralidade do PNDH 3, entre elas, está a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à igreja católica, que questiona, entre outros aspectos, a modificação do dispositivo que previa a realização de audiências coletivas. “Qualquer ação que um movimento faça, eles [os latifundiários] apelam para o poder judiciário e o poder judiciário é rapidíssimo para atender qualquer demanda do agronegócio”, avalia Antônio Canuto, secretário da Coordenação Nacional da CPT.

Na opinião do juiz Luiz Fernando, ao pressionarem por esta modificação no plano, os setores contrários a este dispositivo, na realidade, fazem uma aposta de que o ordenamento jurídico e os critérios ideológicos dos juizes são de defesa intransigente da propriedade. “Conhecendo a nossa história, o perfil do judiciário, as características das nossas leis, você apostar nesta solução de tutela incondicional da propriedade é uma aposta boa, paga bem”, comenta.

Para ele, a reação conservadora objetivava condicionar o juiz a decidir pura e simplesmente com base em critérios ideológicos, de forma a privá-lo de ter contato com a realidade. “O conflito fundiário é eminentemente de fundo social e o juiz fica melhor instrumentalizado para compreender a realidade. Sem isso a tendência é que a decisão seja supostamente técnica, despida de qualquer sentido da realidade e marcadamente ideológica”, diz.

O caso que abre esta reportagem, da desocupação da fazenda Cambará, é, na opinião de Ulisses Manaçais, do MST, um exemplo de situação em que a audiência era necessária, já que, segundo o movimento, não havia um mandado de reintegração atual. Ulisses denuncia que, na realidade, a parte da fazenda ocupada pelas famílias se trata de uma gleba federal. A fazenda fica às margens da BR 316, que liga o Pará a São Luiz do Maranhão e, como se trata de uma rodovia federal, de acordo com o MST, as áreas em torno da BR são consideradas terras públicas, mas que foram apropriadas ilegalmente pelo dono da fazenda Cambará. “A primeira proposta [do PNDH 3] era um avanço. Este é um exemplo escandaloso de terra pública apropriada de forma ilícita, se houvesse a audiência pública na região, provavelmente a polícia não faria o despejo de forma violenta”, aposta.

Conflitos aumentaram em 2009

A CPT realiza todos os anos um balanço sobre os conflitos no campo. Em relação a 2008, as ocorrências aumentaram. A Comissão registrou 528 conflitos em 2009, 69 a mais do que no ano anterior. Vinte e quatro pessoas foram assinadas no ano passado, três a menos que em 2008. Mas, no total, mais de 415 mil pessoas estiveram envolvidas nos conflitos.

Para Antônio Canuto, da CPT, o aumento das ocorrências em 2009 pode revelar uma retomada da reação dos movimentos sociais, já que, desde 2005, os conflitos vêm decrescendo. Os dados também mostram que as ocupações aumentaram no ano passado, foram 290, 38 a mais que no ano anterior.

De 2000 a 2009, 349 pessoas morreram em conflitos rurais. Só no ano de 2003, foram 71 assassinatos. Canuto explica que os dados revelam picos de atuação dos movimentos sociais e de reação dos latifundiários. “Em 2003, com a chegada de Lula ao poder, se pensava que ele faria a Reforma Agrária. Com isso houve dois processos ao mesmo tempo – os movimentos sociais atuaram com mais intensidade, ocuparam mais terras, e, por outro lado, o latifúndio e o agronegócio reagiram com muito mais violência e usaram todos os instrumentos possíveis para barrar o avanço dos movimentos, então aí se deu o pico dos conflitos”, detalha.

De acordo com o secretário da CPT, os movimentos sociais arrefeceram um pouco e os fazendeiros acabaram utilizando mais o poder judiciário, que ele caracteriza como um “forte aliado do agronegócio”, para se contrapor às ocupações.

Canuto destaca, entretanto, que o assassinato sempre “está no horizonte” de atuação dos setores contrários à reforma agrária. “Trata-se de um último apelo para conter o ímpeto dos movimentos e dos trabalhadores”, explica. Neste sentido, os dados indicam 143 pessoas ameaçadas de morte em 2009. “Historicamente, vários assassinatos contabilizados já constavam da lista de ameaçados, depois as ameaças se concretizaram. A Irmã Dorothy [Dorothy Stang, missionária estadunidense naturalizada brasileira, assassinada em 2005] é um exemplo, mas há vários outros. Em muitos casos, as ameaças já tinham sido denunciadas à polícia e mesmo assim acabam se concretizando”, comenta.

Ao todo, em 2009, existiram no Brasil 654 áreas de conflito. O estado do Pará, onde se localiza a Fazenda Cambará, é o estado brasileiro com mais regiões conflituosas: 123. São Paulo fica em segundo lugar, com 81 áreas de conflitos, seguido pelo Maranhão, com 64 e pelo Amapá, com 56.

Limite da propriedade rural

Para Antônio Canuto, a única forma de solucionar os conflitos fundiários definitivamente é a realização de uma profunda reforma agrária. Ele explica que as populações tradicionais foram sendo espoliadas do território e alijadas do processo produtivo. “A reforma agrária não significa simplesmente pegar a terra e dividir, significa primeiro reconhecer as terras indígenas, as áreas quilombolas e das comunidades tradicionais e depois fazer uma grande divisão das terras dos latifúndios, estabelecendo, além dos princípios constitucionais que têm a função social da propriedade, um limite para a propriedade. A terra não poderia ter um tamanho ilimitado como tem no Brasil”, diz.

O PNDH 3, apesar de tentar criar dispositivos para diminuir a violência no campo, não faz referência ao estabelecimento de um limite para a propriedade rural. “Avançar na implantação da reforma agrária, como forma de inclusão social e acesso aos direitos básicos, de forma articulada com as políticas de saúde, educação, meio ambiente e fomento à produção alimentar”, diz o plano no objetivo estratégico I da diretriz 4.

Movimentos sociais, sindicatos e organizações diversas reunidas no Fórum Nacional pela Reforma Agrária estão organizando o Plebiscito Popular pelo limite da propriedade da terra. A votação será realizada na Semana da Pátria – em torno do dia 7 de setembro. O fórum propõe, com base em referências do Incra, que os imóveis rurais tenham um limite de 35 módulos fiscais. O tamanho do módulo varia de acordo com a localização do imóvel – de 175 hectares em terras próximas às capitais com boa infraestrutura e fácil acesso aos mercados consumidores até 3.500 hectares, na região amazônica, por exemplo. Na página eletrônica do Fórum, além de informações sobre os tamanhos das propriedades, também está um abaixo-assinado online pela aprovação do limite da propriedade.

Para Canuto, enquanto a reforma agrária não é realizada, o dispositivo de mediação de conflitos por meio de audiências coletivas poderiam minimizar os problemas. “Já que o conflito existe e que não haverá a reforma agrária, vamos evitar um conflito maior, antes de colocar a polícia, vamos tentar efetuar um acordo entre as partes”, corrobora. Para o secretário da CPT, a mídia comercial neste caso repercutiu enormemente a oposição dos ruralistas à proposta, o que contribuiu para o recuo.

O juiz Luiz Fernando Vidal acredita que o efeito prático das modificações no plano no que se refere a este ponto não é muito significativo. “Pode haver um prejuízo por essa ideia não estar mais formalizada num documento. Mas isso também fica compensado pela ampla publicidade que a questão acabou tomando. Hoje todo mundo sabe que havia uma previsão de uma tal de uma audiência, que não tem mais, e que talvez se ficassem quietos, ninguém saberia da existência dela”, opina.

Criminalização

Luiz Fernando Vidal afirma que reconhecer que os mecanismos legais não têm garantido a reforma agrária auxilia na compreensão de que a luta pela terra é legítima. “A ocupação de terra é uma boa solução? Não é. Assim como a greve não é e aumentar impostos também não é. Nada que é traumático para alguém pode ser uma boa solução. Mas temos que reconhecer que os mecanismos puramente legais e as políticas públicas que vêm sendo adotadas têm sido manifestamente insuficientes para resolver os problemas da reforma agrária. Acabamos sendo obrigado a reconhecer que existe uma legitimidade destas ações de ocupação”, pontua.

Para o juiz, sem esta constatação, corre-se o risco de criminalizar quem não tem terra e luta por ela, em um ato de resistência. “Não adianta dizermos que o problema existe e que as pessoas que sofrem este problema têm que trabalhar indefinidamente, candidamente e pacificamente pela solução, se a solução não vem. Quando eu constato que, ainda que indesejada, a ocupação é legítima, trabalho com a perspectiva de superar o impasse de uma maneira inclusiva, trago todos para a via da legalidade de uma maneira legítima, que atenda os anseios do ponto de vista social e político. Se não faço esta constatação, eu criminalizo e digo simplesmente que é um caso de polícia”, reflete.

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