Assisti, recentemente, a duas produções da Netflix, ambas documentários. Em minha opinião, falam quase das mesmas coisas, mas de formas diferentes. E todas as duas, válidas.
A primeira, “Minimalism: A Documentary About the Important Things”, é uma produção estadunidense, com duração de 1h18, de 2016. Ela aborda o “sonho americano” (American dream) que povoou e povoa o imaginário não apenas dos cidadãos daquele país, mas de boa parte da população mundial. A partir do relato de dois jovens bem-sucedidos nas suas profissões, o documentário nos enredará sobre como nos enganamos em trocar o ser pelo ter numa corrida desenfreada pela felicidade a qualquer preço. Essa busca insana nos joga nas compras de produtos e mercadorias o tempo todo. Ficamos reféns do consumo, do consumismo. Quanto mais compramos, mais precisamos de dinheiro, mais precisamos trabalhar, mais ficamos cansados, mais ficamos angustiados, mais ficamos fora de nós. Mais nos endividamos. Porque o capitalismo é uma máquina de frustação e de criação desejos.
Essa máquina é engendrada por outra construção deformada pelo capitalismo: a felicidade. Não sabemos o que ela é, mas somos impingidos a sermos felizes, a buscar a felicidade completa, se não somos felizes ficamos tristes, angustiados e sofremos verdadeiramente. E como se aplaca esse estado emocional? No consumo, pagando. E para por aí? Não. Quando essa felicidade chega às nossas mãos, esses desejos-que-se-transformaram-em-mercadorias já não são mais desejos atuais, mas passados. E voltamos à busca da felicidade, voltamos às compras. A felicidade capitalista só existe porque não sabemos entender o que não é felicidade.
O documentário, sem dúvida nenhuma, é instigante, mas ainda assim não fala tudo, não tem o propósito de questionar estruturas, fica apenas nas questões “conjunturais” e estão nele diversas marcas e estilos de vida, e a invisibilidade de outros segmentos da sociedade norte-americana. Mesmo assim, acredito que tenha valor assisti-lo. Por isso, quem for tocado pelos relatos apresentados sugiro que vá além do “Minimalism”. Aproveite a oportunidade e questione tudo a sua volta. Por exemplo: Por que alguém tem como preocupação trocar de carro luxuoso todo ano e tantos outros não conseguem comer decentemente todos os dias?
Joshua Fields Millburn em uma das cenas do documentário da Netflix. Imagem: reprodução de vídeo.
Um dos jovens que criou o grupo “Os minimalistas”, Joshua Fields Millburn, diz, e numa real sinceridade: “Ame as pessoas e use as coisas, porque o oposto nunca dá certo.”
Na outra ponta temos o delicioso e sensível documentário “Pepe – uma vida suprema”, uma produção conjunta Argentina, Uruguai e Sérvia, com direção de Emir Kusturica, com duração de 1h13, de 2018. Aqui também falaremos da vida simples – de minimalismo, quem sabe, mas este “chega” à estrutura capitalista, aquilo que nos transformou em individualistas e egoísta, em consumistas.
A produção mostra a vida simples de José “Pepe” Mujica, que foi presidente do Uruguai de 2010 a 2015. O documentário, em minha opinião, também vai abordar a infelicidade do consumismo de “Minismalism”, mas, com certeza, de outra forma. Nele, o personagem principal é bem-sucedido”, mas de outra forma. Depois de passar 13 anos como preso político, Mujica ensina: “Muito do que digo hoje nasceu naquele tempo de profunda solidão no cárcere. Eu seria mais fútil, mais frívolo, mais superficial, mais seduzido pelo sucesso […], o que vou dizer não pode ser interpretado com espírito limitado. Às vezes, o que é ruim é bom. E, às vezes, o que é bom é mal.”
No minimalismo de Mujica o sistema capitalista aparece, porque é ele que nos transforma em seres individualistas e egoístas. Temos uma contradição a superar, afirma: “Como as pessoas perceberiam que não existe coisa minha e sua? Isso porque, no fundo, somos animais sociáveis e, como tais, somos socialistas. Mas a história e os desenvolvimentos nela nos transformaram em capitalistas.”
José “Pepe” Mujica em seu sítio, no Uruguai. Imagem: reprodução de vídeo
Por isso, sábio entender que os desajustes da sociedade capitalista não se referem apenas a consumir menos ou o necessário – mas claro que isso é válido também!! –, mas, como observa Mujica, para superar tantas contradições o papel da cultural é incomensurável. “Acho que a batalha cultural é a batalha que não lutamos. Não haverá humanidade melhor se não houver transformação cultural. Cultura não são quadros pendurados […]. Cultura é a rotina de valores que temos na vida. Isso é parte da construção de uma sociedade melhor […] É algo que será decisivo no futuro.”
O documentário do sérvio Kusturica nos mostra todo o tempo a quais valores culturais Mujica se refere, resumo do meu jeito: ser solidário e não fugir à luta a favor da humanidade. Uma cultura que nos faça entender que não seremos felizes num mundo que cria desigualdades, guerras e destruições ambientais.
Como se resolve isso? Mujica é enfático: “A solução não é o capitalismo. Precisamos descobrir outra coisa. Outra forma. Nós pertencemos a essa busca. Na América Latina, não há respostas, há busca.”
Imagem capa: Pixaby