O assassinato de Mateus importa…

Imagem: Migalhas

No campo da História por muito tempo o que foi narrado era pela ótica dos colonizadores, genocidas, reis e rainhas opressores, e o grande populacho sequer existia, eram insignificantes figurantes. O que importava eram as narrativas das instituições, das grandes personalidades políticas, tudo pautado na documentação. Uma História pela ótica dos “vencedores”.

Carlo Ginzburg, expoente da Escola dos Annales, em “O queijo e os vermes”, persegue uma historiografia distinta da escola positiva. Nesta obra, Domenico Scandella, um indivíduo do “povão”, por assim dizer, representa os subalternos e esquecidos, na história de um moleiro que encarou a Inquisição da Igreja Católica, por irresistivelmente dialogar e expor suas “terríveis heresias” em pleno século XVI.

E foi assim por muito tempo no campo epistemológico da historiografia. Aprendemos que o genocida Duque de Caxias é um herói patrono do Exército brasileiro. Domingo Jorge Velho fora um destemido e corajoso bandeirante, e não um criminoso que liderou a investida contra o Quilombo do Palmares.

Oralidade em lugar da documentação registrada por mãos brancas. Não descartemos esta, mas façamos outra interpretação dos documentos, de acordo com a “contação” de histórias de nossos ancestrais africanos de indígenas, que mantiveram até aqui a identidade, cultura e história viva, para ser conhecida e contada com outros tons e outros atores.

Assim conhecemos Dandara, Zeferina, Aqualtune, Chico Rei…

Se no campo acadêmico escrevemos uma História dos nossos heróis populares, mulheres pretas, homens pretos, indígenas, não significa que outras narrativas infames se levante contra nosso povo, memória e identidade, na historiografia do tempo presente, no cotidiano, de heróis e heroínas anônimas.

Esta coluna de hoje eu dedico a um cara que não conheci pessoalmente, Mateus também conhecido por Guelo, morador do Engenho Velho da Federação, bairro de Salvador. Mateus foi morto por uma bala disparada pela Polícia Militar da Bahia, no início desta semana.

Não foi um gol de um artilheiro na marca do pênalti. Não mesmo.

Sua história de vida como homem preto, periférico é escrita por duas versões. A primeira atestada pela grande mídia, distante e sem qualquer relação afetiva com Mateus, que opta por reproduzir a versão dada pela polícia. E a segunda narrada com muita dor, lamento, protesto, revolta, pneus queimados, postagens nas redes sociais de amigos, conhecidos, parentes de Guelo que reivindicam o mesmo repudio tributado pela morte covarde, perversa e desumana de George Floyd.

Nesta narrativa coletiva emerge uma história distinta de um homem preto que se manteve longe dos “laços do inimigo”, digo as abordagens policiais nos bairros periféricos, que criminalizam a cor, o cabelo e as formas de expressão da negritude. Um cara “Brother”, como sentenciado pelo meu irmão de Axé e mestre do couro Tonsele.

A polícia que mais mata é também que a mais morre. E quem mais morre, são indivíduos pretos fardados.

Por qual razão isso ocorre no Brasil, em que a população é majoritariamente preta?
Alienação mental que a branquitude impõe por meio do mito da democracia racial naturaliza a violência racial no Brasil. Alguns pretos não reconhecem a identidade e origem africana que carregam, muitos e tentam embranquecer para talvez inconscientemente fugir da violência racial.

O professor Abdias do Nascimento em sua obra “O Quilombismo” fala que o supremacismo branco brasileiro é oculto, dissimulado e extremamente perigoso, porque, diferente do racismo explicito estadunidense e do extinto apartheid na África do Sul, aquele se infiltra de forma sutil nas estruturas mentais.

Vejamos.

Um policial militar, no estado de São Paulo, age com toda cautela antes de conduzir para delegacia um homem branco, morador de Alphaville, após este lhe insultar com toda a sorte de adjetivos. Dois policias militares, na Bahia, invadem a casa de uma senhora negra, sendo agredida, em meios gritos de sua filha, sob alegação de suposto desacato. Uma mulher preta grávida é agredida por sargento da polícia militar no largo do Santo Antônio, em Salvador, quando protestava contra uma abordagem policial violenta feito a um homem preto.

Um homem preto e uma mulher preta foram escolhidos por bode expiatório e presos na manifestação do assassinato de Mateus. Por qual razão? Por manifestarem sua indignação juntamente com mais de sessenta fiadores da idoneidade do irmão morto – me permita a aproximação e intimidade. Estas pessoas conduzidas como criminosas para 7° delegacia, com certeza temeram pela suas vidas, pela sua integridade física…

Uma amiga moradora da Penha, no Rio de Janeiro, me perguntou pelo Instagram, o que eu achava de comparecer nas manifestações do último domingo, respondi na mesma pegada do irmão Emicida, mas mudei de ideia quando li o seguinte:

‘‘…entendo, preto. eu tô inclinada à ir, por conta de tudo que tá rolando nas favelas, sabe? nunca houve quarentena por lá… só descaso do estado, galera sem água e sem ter o que comer e os moradores se mobilizando entre si, sabe? saiu liminar do STF proibindo operação nas favelas e agora à noite o tiro tava comendo no alemão, sabe?’’

Estas condutas absurdamente normais são praticadas cotidianamente contras pessoas pretas pela polícia no Brasil nos bairros periféricos.

Eu, apesar de não conhecê-lo, me junto aos sessenta e tanto que historiagrafaram a vida de Mateus, Guelo, o brother… Esta morte não inspira nos hipócritas, ‘‘engajamentos’’ nas redes sociais, mas importa para muitos que já se foram, que aqui estão e aqueles que ainda virão…

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Pedrinha Miudinha

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