O grito entalado na garganta da atleta de vôlei Carol Solberg, tá entalado na minha, na sua, na de todo mundo. FORA BOLSONARO! Ela enfim soltou o grito ao final de entrevista para uma rede de tv depois da final de um campeonato. E lá vieram os homens da proibição e judicialização. No caso, proibi-la de exercer o direito constitucional à livre expressão e ao pleno exercício da cidadania. Ela foi acusada de descumprir regras e a ética esportiva, pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva, que estipulou uma multa de 100 mil reais e suspensão por seis jogos. Venceu a pressão social e as interferências da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) que solicitaram integrar o processo. O julgamento era prá ter sido na última terça, mas não rolou.
Isso me lembrou de quando eu era bancária, nos anos 1980, acontecendo as primeiras eleições da nossa vida, e foi assim nas outras. A gente era proibida não só de falar, mas até de usar um broche de partido, por mais que argumentássemos que era a nossa roupa, que nada estávamos falando. Dávamos um jeito. Para o público interno propaganda no banheiro, adesivos colados por ninguém, panfletos logo cedo na entrada dos funcionários. Para os usuários do Banco sempre dávamos um jeito de puxar conversa e, se fosse o caso, entregar um panfletinho. Mas nada fazia o efeito daquele conjunto de trabalhadores usando um “boton” do mesmo candidato. Ainda assim elegemos uma boa bancada para à Constituinte de 1988.
Conquistamos avançada legislação, que consolidaria a democracia neste país, cujo povo sofreu tanto com a ditadura militar. Acreditávamos muito naquela Constituição Cidadã, como era chamada. Infelizmente, nunca se regulamentaram os capítulos e artigos que poderiam fazer a democracia avançar mais, como o da comunicação. E nos últimos anos a Constituição tem sido rasgada sistematicamente.
Estará Carol sendo respeitada como cidadã? Estará um trabalhador proibido de falar o que o patrão não quer sendo respeitado como cidadão? Ora, a cidadania é o que deveria garantir a uma pessoa participar da vida política. Mas onde pode e deve o cidadão trabalhador externar sua opinião? Onde pode conversar sobre a vida e trocar ideias com seus iguais? A partir de que lugar pode participar da vida política? No trabalho, seja na fábrica, na quadra ou na universidade. Ou será que dá prá dividir a pessoa e ter uma parte não cidadã? Carol deixou isso claro. Depois de listar a Amazônia, os indígenas, o racismo, e vários outros absurdos que vem acontecendo no país. “Não posso entrar em quadra como se isso tudo me fosse alheio. Falei porque acredito na voz de cada um de nós. Vivemos em uma democracia e temos o direito de nos manifestar e de gritar nossa indignação com esse governo”.
Os que fragmentam nossa cidadania são os mesmos que retalham o nosso corpo em pedaços, como se uma parte não dependesse da outra, para incrementar os lucros da indústria da saúde. Nossa medicina é hoje de especialistas, alavancando os negócios dos planos privados, da indústria farmacêutica, das cirurgias e exames desnecessários, da medicina estética a favor da enganadora aparência.
Mercantilizaram a saúde e ampliam seus lucros. Azar de quem não pode pagar por ela e depende de políticas públicas. São os mesmos que dividem a educação em exatas e humanas, desvalorizando, e até eliminando, matérias como história, filosofia, geografia, artes. Justamente a parte do conhecimento que deveria ser oferecida em todos os cursos, para um entendimento do estar no mundo e construir uma vida plena, uma participação cidadã desalienada.
Os que nos retalham são os mesmos que nos separam da natureza, para explorá-la, destruí-la, disputando com ferocidade os últimos territórios não invadidos. Não levam em conta que estão perfurando a si mesmos, envenenando a água de que somos feitos e o ar que nos dá a vida. São os mesmos que procuram água em outros planetas e promovem as guerras para ampliar seu poder. São os mesmos que desavergonhadamente escancaram sua necropolítica, selecionando partes da humanidade, negros e outros não brancos de preferência, como descartáveis, como os que devem morrer para que eles dominem melhor as outras partes da nossa espécie.
O fato é que tudo isso está nos matando. Física e emocionalmente. Proíbem-nos de falar, de defender nossa visão de mundo, até matam para nos impedir. E chamam de democracia. A deles. Em 2018, a Confederação Brasileira de Vôlei defendeu a liberdade expressão, ao contrário de agora. Era a liberdade de apoiar nosso algoz presidente. Aconteceram outras manifestações a favor deles, de jogador de futebol, lutador, e ninguém foi punido. O direito à comunicação é só do Gabinete do Ódio, do exército de robôs pagos em milhões, para espalhar fake News, negacionismo e fundamentalismos religiosos. Ainda bem, há os que lutam contra esse proibicionismos que tentam calar vozes diversas. Nossa história recente tem vários exemplos.
Em junho passado, manifestações de torcidas, atletas, personalidades ligadas ao esporte, deram início a um movimento chamado “Esporte pela Democracia”. “A tentativa contínua de destruição da democracia se mostra de forma clara e direta por inúmeras medidas autoritárias. Testemunhamos diariamente desrespeito à Constituição, o uso desvirtuado da política em benefício de poucos, ataque às instituições democráticas e ameaças ditatoriais”, publicaram em seu manifesto.
Também em junho, manifestações anti racistas correram mundo repercutindo o ocorrido nos Estados Unidos. Posicionamentos políticos públicos de artistas e atletas, de pessoas conhecidas pelo povo, são importantes para a democracia. O debate de ideias permanente é fundamental para a democracia que queremos. Ela está em disputa globalmente, nós defendemos a vida e isto que está aí não nos serve. Mais do que não calar, é necessário gritar para que parem de nos impedir, para que parem de nos matar.
Imagem: Torcida do Náutico em jogo do Campeonato Pernambucano no ano passado /Brigada Popular Alvirrubra
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de Terezinha Vicente