Eram 5h30, estava perturbada com a avalanche de ideias e sensações que inundava meus pensamentos, em um sonho acordado. Um cansaço, uma mistura de onírico e realidade trágica e cruel, de coisinhas pequenas das micro-relações em processo de elaboração, e das coisas grandes, como os cenários de barbárie que estamos vivendo, evidenciado pela pandemia, trabalhando rápida e eficazmente para o extermínio da população em situação de vulnerabilidade, marcados pela classe social, pela raça e pela etnia, condição de saúde, gênero, opção sexual, entre outros.
Precisava pausar. Pausar a tela. Mudar o olhar, ver a natureza, mudar de lugar. Decidi não trabalhar naquela terça-feira, apesar de que fiz alguns trabalhos pela manhã, quase que não me permitindo largar o computador, contraditoriamente ao que acordei comigo mesma, que precisava fazer e que faria.
Almoçamos e entramos no carro, meu filho Arturo e eu. Com máscaras e munidos de álcool em gel e em spray, nos perguntamos onde iríamos. Com tantas limitações de contato físico, ir a um lugar fechado, não daria; nos parques, teríamos que ficar passando álcool em tudo o que é brinquedo; em algum restaurante, também não seria muito seguro. “Vamos pegar estrada, mamãe, podemos ir conversando e ouvindo música”, me disse Arturo.
Saímos de Quito pelo caminho mais longo, sem túnel e sem pedágio. Tínhamos tempo. Descemos pelo bairro Guápulo, patrimônio histórico da humanidade, entramos pela “Simón Bolívar” e pegamos a “Ruta Viva”. Estradas de belas paisagens dos andes equatorianos, onde podemos ver o vulcão nevado Cotopaxi, em meio às muitas montanhas.
Decidimos passar pela escola do meu filho, que fica fora de Quito, na cidade de Tumbaco, zona rural, no pé da montanha Ilaló. Um privilégio frequentar uma escola-fazenda, em que se estuda em meio à natureza e na linha da pedagogia Montessori. Subimos por lá, caminho conhecido! Ao passar pela escola, Arturo sentiu: “ai que saudades da minha escola”. No caso dele, é muito duro estar longe da escola e dos amigos, aos seus 13 anos. Respiramos, paramos, passamos devagarzinho, matando as saudades, reconhecendo os vazios, olhando os espaços e comentando: “aqui é a parte dos pequenos, aqui é o primário, aqui é a secundária”, “ah, a ponte ainda está lá”, trazendo as memórias e alimentando-nos delas, transformando-as numa nova experiência.
Continuamos subindo o Ilaló e vimos alguns focos de incêndios. É comum acontecer nesta época de verão, pelos fortes ventos e o sol equatorial. Paramos o carro lá no alto e ficamos vendo a paisagem. Que coisa gostosa. Que sensação maravilhosa. Um respiro de um novo ar. Nova vista. Uma amplitude que permite ver-nos tão pequenos e insignificantes, mas que nos faz mais alegres e conectados com a “pachamama”, nome do colégio do meu filho.
No caminho, tanto de ida como de volta, falamos sobre sexualidade, identidade, família, lei. Discutimos sobre a hipótese de Arturo de que a homossexualidade poderia ter relação com aqueles que se dizem “emo”. Seu questionamento veio pelo fato dele ter conhecido duas pessoas que eram estilo “emo” e depois “saíram do armário” e se assumiram gays. Pensamos em muitas coisas, refizemos as perguntas, discutimos sobre os casos semelhantes, os agrupamentos pelas representações e os guetos. Conversamos sobre a heterogeneidade, as possibilidades múltiplas que temos como seres e que os rótulos não nos definem singularmente. Falamos sobre os pais, aqueles que não têm pais e aqueles que os pais podem ser presos por não pagarem pensão pros seus filhos. Dos sofrimentos. Discutimos sobre a lei, ser juiz, corrupção e o PCC.
A quarentena, que já dura quase 150 dias, no final, pode ser uma oportunidade para encontrarmos prazer em coisas simples, naquelas que alguns de nós, privilegiados, podemos fazer no agora e que são tão valiosas, como: decidir pausar, pegar uma estrada, subir uma montanha e apreciar a paisagem, enquanto conversamos sobre temas controversos e variados, e ouvimos música, entre mãe e filho.
Fazer uma pausa para conversar. Dedicar um tempo para (re)conhecer meu filho que cresce, aprende e compreende a vida e as relações de novos jeitos, aproximar-me de seus interesses, escutar suas dúvidas e descobertas das complexidades e contradições, permitiu que revisitasse aspectos que considerava fechados e me abrisse para a possibilidade de sonhar com um novo mundo.
O fim do mundo, ao que nos encontramos, também anuncia um novo que se inicia. Sinto um fio de confiança ao pensar que as próximas gerações poderão criar um mundo mais solidário e equitativo, menos desigual e opressor.
Esses jovens de hoje, por menos que queiram, estão tendo que parar e encontrar-se com questões políticas, econômicas e sociais que nos atravessam, violentam, desqualificam e matam. As estruturas coloniais e bárbaras de poder/saber/ser estão sendo nomeadas, discutidas, questionadas. Poderá, essa nova geração, produzir uma nova narrativa-ação, de um tempo novo?
Imagem: Tatiana Bichara
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