Marilena Chauí – Conferência – O silêncio dos intelectuais-
Tema – O intelectual engajado, uma figura em extinção? 2ª e 3ª parte
Dando continuidade ao artigo anterior, onde iniciei a disseminação, e porque não dizer “divulgação” desta conferência, que julgo de extrema importância pois é necessária uma elucidação da sociedade em geral sobre os temas nela abordados, pois a partir da despolitização da sociedade devido ao dominio dos bens culturais, da privatização do conhecimento, a classe dominante atinge plenamente seus obejtivos, por meio da impregnação de sua ideologia, já que se torna “dona” do conhecimento.Neste parte da conferencia Marilena Chauí trata de questões como a do “Fantasma da independência”, explicitando o fato de que a noção de engajamento como tomada de posição no interior da luta de classes contra a forma de exploração e dominação vigentes em nome da emancipação ou da autonomia em todas as esferas da vida econômica, política, social, podemos diferenciar o intelectual e o ideólogo. A filósofa enumera as causas para o retraimento, para o silêncio dos intelectuais, também fala do “Ceticismo desencantado”, da ausência de um pensamento capaz de desvendar e interpretar as contradições que movem o presente, da questão da “Competição empresarial”, refere-se ao fato de que se os intelectuais estão em silêncio, em contrapartida os ideólogos estão falando cada vez mais, também fala do “Narcisismo político” e nos elucida que a naturalização e valorização positiva da fragmentação e dispersão sócio-econômica estimulam um individualismo agressivo e a busca de sucesso a qualquer preço, ao mesmo tempo em que dão lugar a uma forma de vida determinada pela insegurança e pela violência institucionalizada pela volatilidade do mercado. e da perda da automia racional.A seguir nas palavras da filósofa suas considerações.
2ª parte
Sob o poder do modo de produção capitalista, fracassa o projeto moderno de harmonia entre o pilar da regulação e o pilar da emancipação, a vitória do pilar da regulação sobre o pilar da emancipação conferiu hegemonia a identidade entre a ordem vigente e a racionalidade, mas não mais uma racionalidade autônoma, mas sim uma racionalidade repressiva e instrumental para usarmos a expressão cunhada pela escola de Frankfurt, uma vez que o fracasso do projeto moderno decorre da forma de inserção da racionalidade no modo de produção capitalista, torna-se indispensável pensar a autonomia racional em outra chave. Lembremos que a vitória da regulação sobre a emancipação, ou seja, a da ordem sobre a transformação, recebeu com Marx um nome preciso, chama-se “ideologia burguesa”, em outras palavras, a autonomia racional das artes, ciências, técnicas, filosofia, ética e direito não poderia escapar de ser determinada pela forma histórica da divisão social das classes, com a separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual no modo de produção capitalista.
Essa separação levou ao ocultamento da determinação material da racionalidade, invertendo a relação real entre a materialidade sócio-econômica e o espírito e por isso mesmo, conferiu ao espírito o poder de produzir o real e a marcha da história, e é esse um dos aspectos da ideologia.
A independência conquistada a duras penas pela racionalidade moderna transformou-se num fantasma poderoso, a crença de que as ideais determinam o movimento da história ou que elas são o motor da historia ocultando a determinação histórica do saber, a divisão social das classes, a exploração econômica e a dominação política, as idéias se tornam representações abstratas, imagens que a classe dominante possui de si mesma e que se estendem para todas as classes sociais e para todas as épocas; numa palavra, a ideologia integra a lógica da luta de classes em favor da classe dominante, isso significa como explicou Gramsci que a classe dominante possui intelectuais orgânicos.
Mas significa também que a autonomia racional das artes e do pensamento entendida como autonomia dos intelectuais e de sua intervenção publica só pode ser afirmada se ela for balizada pela tomada de posição no interior da luta de classes, contra os dominantes, na redefinição dos universais compreendendo-os como universais concretos. Essa tomada de posição contra a ordem vigente e contra a classe dominante é exatamente o que a noção de engajamento ou do intelectual como figura que intervém criticamente na esfera púbica, é isso, essa tomada de posição que o engajamento procura exprimir, trazendo consigo, não só a transgressão da ordem e a critica do existente, mas também a critica da forma e do o conteúdo da própria atividade das artes, ciências, técnicas, filosofia e direito, com a noção de engajamento como tomada de posição no interior da luta de classes contra a forma de exploração e dominação vigentes em nome da emancipação, ou da autonomia em todas as esferas da vida econômica, social, política e cultural, essa noção de engajamento nós podemos diferenciar o intelectual e o ideólogo.
3ª parte
Se a diferença entre o intelectual e artistas, cientistas, técnicos, filósofos, juristas, encontra-se no fato de que o intelectual é ou o artista, ou o cientista, ou o técnico, filósofo, jurista, quando ele intervém criticamente no espaço público, falando em publico, então, a expressão “o silêncio dos intelectuais” pareceria contraditória, pois quando em silêncio um artista um pensador, deixam de ser intelectuais, já que intelectual é aquele que intervém publicamente, mas se há silêncio, se não há intelectuais, convém indagar quais poderiam ser as suas causas, delas creio que falaram os demais conferencistas, aqui nos limitaremos a indicar apenas aquelas que nos parecem as causas mais relevantes para examinar o retraimento atual da figura do intelectual engajado.
A primeira destas causas certamente é como dizia um autor, “o amargo abandono das utopias revolucionárias a rejeição da política um ceticismo desencantando”, essa atitude decorre, ela se dá, sob os efeitos do totalitarismo dos paises ditos comunistas, do fracasso da Glasnost na união soviética, do recuo da social democracia, com a adoção da chamada “terceira via”, ou do “capitalismo acrescido de valores socialistas” como diz o partido socialista inglês; assim desaparece o horizonte histórico do futuro o presente se fecha sobre si mesmo, a ordem vigente aparece autolegitimada e justificada porque nada parece contradizê-la nem a ela se opor, e os ideólogos podem comprazer-se falando do fim da história. O retraimento do engajamento ou o silêncio é aqui o signo de uma ausência mais profunda, a ausência de um pensamento capaz de desvendar e interpretar as contradições que movem o presente.
A segunda causa é o encolhimento do espaço publico e o alargamento do espaço privado sobre os imperativos da nova forma de acumulação do capital conhecida como neoliberalismo, um dos efeitos dessa situação é a transformação de direitos econômicos e sociais em serviços, definidos pela lógica de mercado e com isso a transformação do cidadão em consumidor. Ora, a democracia instituí a cidadania como a ação de contra-poderes sociais para criação e garantia de direitos graças a participação nas lutas políticas, se os direitos conquistados nos embates do espaço publico e na luta de classes, são privatizados ao se transformarem em serviços, vendidos e comprados como mercadorias o cerne da democracia é ferido mortalmente e a despolitização da sociedade é uma decorrência necessária, o recuo da cidadania e a despolitização da sociedade, produzem a substituição do intelectual engajado pela figura do especialista competente, cujo suposto saber lhe confere o poder para em todas as esferas da vida social dizer aos demais o que devem pensar, sentir, fazer e esperar, a critica do existente é silenciada pela proliferação ideológica competente dos receituários do bem viver.
A terceira causa é a nova forma de inserção do saber e da tecnologia no modo de produção capitalista, tornaram-se forças produtivas deixando de ser um mero suporte do capital para se converter em agentes diretos da acumulação capitalista, conseqüentemente mudou o modo de inserção dos pensadores e técnicos na sociedade, porque eles se tornaram agentes econômicos diretos, e a força e o poder capitalistas encontram-se hoje no monopólio do conhecimento e da informação, surge assim a expressão “sociedade do conhecimento”, para indicar que a economia contemporânea se funda sobre as ciências e a informação graças ao uso competitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nos processos produtivos, chega-se mesmo a falar em capital intelectual, considerado por muitos como o principal principio ativo das empresas, afirma-se que hoje o conhecimento não se define mais por disciplinas especificas e sim por problemas e por sua aplicação nos setores empresariais, a pesquisa é pensada como uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou de instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado, em outras palavras a pesquisa não é uma investigação, ela é um Survey, de problemas, dificuldades e obstáculos para realização de um objetivo e um calculo de meios para soluções parciais e locais para problemas e obstáculos locais, ela emprega intensamente redes eletrônicas para se produzir e se transformar em tecnologia e se submete a controles de qualidade segundo os quais deve mostrar sua pertinência social mostrando sua eficácia econômica.
Fala-se em “explosão do conhecimento” para indicar aumento vertiginoso dos saberes, quando na verdade indica o modo da determinação econômica do conhecimento, pois, no jogo estratégico da competição no mercado uma organização de pesquisa se mantém e se firma, se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades e obstáculos sempre novos, então não existe inovação verdadeira do conhecimento. O conhecimento contemporâneo se caracteriza pela fragmentação e parcelização dos problemas em micro problemas, para que pareçam problemas novos. O conhecimento contemporâneo se caracteriza assim, pelo crescimento acelerado e pela tendência a uma rápida obsolescência.
Neste contexto, como falar em autonomia racional? Se as artes já haviam sido devoradas pela indústria cultural, agora são as ciências e as técnicas que se encontram submetidas à lógica do capital. Não só a pesquisa se transformou em survey e posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa, mas ela depende diretamente dos investimentos empresariais, os quais são determinados pelo jogo estratégico da competição no mercado, de maneira que os pesquisadores são mantidos e se firmam se forem capazes de propor obstáculos sempre novos, o que o fazem pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos micro-problemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. Os produtores de conhecimento e tecnologias absorvem a lógica da competição empresarial e dão a ela a sua adesão, negando, portanto a autonomia racional que dava autoridade a intervenção publica critica dos intelectuais, além da dependência das universidades e dos centros de pesquisa em relação ao poder econômico, é preciso lembrar que esse poder se baseia na propriedade privada do conhecimento e das informações, de sorte que esses se tornam secretos, e constituem um campo de competição econômica e militar sem precedentes, em outras palavras, uma vez que o saber dos especialistas é capital intelectual das empresas, e que o jogo estratégico da competição econômica e militar impõe de um lado o segredo e de outro a aceleração e a obsolescência vertiginosa dos conhecimentos, tanto a produção quanto a circulação das informações, estão submetidas a imperativos que escapam do controle dos produtores do saber e do controle social e político dos cidadãos, ao contrário, o social e o político são controlados por um saber ou uma competência cujo sentido lhes escapa inteiramente isso significa que não só a economia, mas também a política é considerada assunto de especialistas e que as decisões parecem ser de natureza técnica, via de regra secretas, ou quando publicadas o são em linguagem perfeitamente incompreensível para a maioria dos cidadãos.
A autonomia racional era a independência com que a racionalidade científica definia os seus objetos, métodos, resultados e aplicações segundo critérios imanentes ao próprio conhecimento e a à distância dos interesses particulares, a nova situação do saber como força produtiva determina a heteronomia do conhecimento e da técnica que passam a ser determinados por imperativos exteriores ao saber; bem como a heteronomia dos cientistas e técnicos, cujas pesquisas dependem do investimento empresarial. Ora, a autonomia racional era a condição tanto da qualidade do saber quanto da autoridade do intelectual engajado para transgredir a ordem vigente, perdida a autonomia, o que resta senão o silêncio?