Maria Quitéria teria papel de destaque nas batalhas ocorridas por toda a margem da Baía de Todos os Santos até Itapuã. Um dessas lutas foi o episódio conhecido como “cerco de Pirajá” que definiu as lutas pela Independência na Bahia a favor dos brasileiros pois a região impedia o acesso das tropas portuguesas ao Recôncavo, de onde provia a maior parte dos alimentos consumidos na capital. A 29 de outubro de 1822 Maria Quitéria participou com seu Batalhão da defesa da Ilha da Maré e, logo depois, destacou-se nos combates ocorridos nas regiões de Conceição, Pituba e Itapuã, integrando a Primeira Divisão de Direita.
No final daquele ano comandou ainda o pelotão de mulheres que impediu o desembarque de uma tropa grande de portugueses e, no começo de 1823, participou do chamado “combate da Pituba”, atacando uma trincheira inimiga, aprisionando soldados portugueses e levando-os sozinha para o seu destacamento. Em abril, ao lado de outras mulheres e com água na altura dos seios, invadiu uma barca portuguesa que estava na barra do Paraguaçu, impedindo o desembarque dos inimigos em terras brasileiras.
Diante de tanta bravura, o General Labatut, enviado por d. Pedro I para o comando geral da resistência, conferiu à Maria Quitéria as honras de 1º Cadete. Após a entrada triunfal do exército libertador brasileiro na cidade de Salvador e a retirada das tropas portuguesas comandadas pelo General Madeira da capital, em 2 de julho de 1823, Maria Quitéria foi coroada com um grinalda feita por uma freira do Convento da Lapa e designada a embarcar para a Corte, no Rio de Janeiro, para uma sessão com d. Pedro I.
Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891), sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e autor de “Brasileiras Célebres” (1862) descreve o insólito encontro de Maria Quitéria com o Imperador, ocorrido no Paço Imperial em 20 de agosto de 1823: “o Imperador, que amava os bravos, que se entusiasmava com a glória das armas, tomando uma insígnia de cavaleiro da sua Imperial Ordem do Cruzeiro, colocou-lhe no peito com a própria mão, dirigindo-lhe estas simples, mas sinceras palavras, que tanto a sensibilizaram: concedo-vos a permissão de usar esta insígnia como um distintivo, que assinale os serviços militares, que com denodo, raro entre os mais de vosso sexo, prestastes à causa da Independência do Império, na porfiosa restauração da Bahia”.
Maria Quitéria também recebeu a graça imperial do soldo de Alferes até o fim de sua vida e foi muito solicitada a comparecer em eventos em sua homenagem na corte. Em uma dessas ocasiões, Maria Graham fez dela uma descrição precisa: “ela é iletrada, mas inteligente. Sua compreensão é rápida e sua percepção aguda. Penso que, com educação, ela poderia ser uma pessoa notável. Não é particularmente masculina na aparência; seus modos são delicados e alegres. Não contraiu nada de rude ou vulgar na vida do campo e creio que nenhuma imputação se consubstanciou contra sua modéstia. Uma coisa é certa: seu sexo nunca foi sabido até que seu pai requereu a seu oficial comandante que a procurasse. Não há nada de muito peculiar em suas maneiras à mesa, exceto que ela come farinha com ovos ao almoço e peixe ao jantar, e fuma charuto após cada refeição, mas é muito sóbria”.
Alguns biógrafos contam que Maria Quitéria pediu a d. Pedro I que intercedesse a seu favor pelo perdão de seu pai, o qual a atendeu prontamente, preparando uma carta endereçada a Gonçalo Dias de Almeida. Sua Alteza pedia ao fazendeiro que perdoasse sua filha. Esse documento jamais foi encontrado. O fato é que depois de uma intensa estadia na corte, Maria Quitéria voltou para a Bahia e foi direto para a casa paterna e ao chegar à fazenda foi saudada com entusiasmo por parentes e irmãos. Seu pai contudo retirar-se da varanda sem dirigir-lhe uma palavra sequer.
Passados alguns dias, nos quais a casa vivia cheia de visitas que apareciam para ouvir as histórias de combates, Gonçalo Dias de Almeida convenceu-se da fama da filha e a perdoou. Maria Quitéria acabou se casando com seu antigo pretendente Gabriel Pereira de Brito com quem teve uma única filha. Dedicou o resto de sua vida aos afazeres da casa, a cuidar da filha e do marido até que em 1835 ficou viúva e mudou-se para Feira de Santana com o objetivo de cuidar de perto do inventário de seu pai, cuja herança ela nunca recebeu.
Nem todos os biógrafos concordam com esta versão, afirmando que seu pai manteve-se irredutível com a ousadia da filha, que se lançou vestida de homem para a guerra, chegando a negar-lhe sua parte na herança. O que todos concordam é que Maria Quitéria levou uma vida pacata e reclusa até se mudar com a filha para Salvador onde viveu de seu parco soldo de alferes. No dia 21 de agosto de 1853, nossa heroína faleceu aos 61 anos, praticamente cega e muito pobre.
De lá pra cá, várias ruas, praças e avenidas do país foram batizadas em sua homenagem. Existe uma medalha militar e uma comenda na Câmara Municipal de Salvador que levam seu nome. Sua imagem está presente em todos os quartéis, estabelecimentos e repartições militares do país, por determinação ministerial. O decreto presidencial de 28 de junho de 1996, Maria Quitéria foi reconhecida como Patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro, um dos poucos que acolhem oficiais do sexo feminino.
Mas a honra maior que talvez historiadores e biógrafos não tenham observado está na boca do povo, que entoa pelos terreiros: “ela é tudo isso/ e não é de brincadeira/ é Maria Quitéria que vem descendo a ladeira/ ela traz consigo o puro axé/ e vem salvar seus filhos de fé …”
*O artigo foi originalmente publicado no livro História do Brasil para ocupados (2013)
Para saber mais
ABREU, Edite Mendes da Gama e. A mulher na Independência da Bahia: aspectos do 2 de julho. Salvador: Secretaria de Educação e Cultura, 1973
ALVES, FERNANDO. A biografia de Maria Quitéria de Jesus. Salvador, 1952.
SOUZA, Bernardino José de. Heroínas baianas. Rio de Janeiro; Brasília: Editora Paralelo/MEC, s.d.
VALIM, Patrícia. Maria Quitéria vai para guerra. In: FIGUEIREDO, Luciano. (Org.). História do Brasil para ocupados. 1ª ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013, v. , p. 236
Imagem: Câmara Federal
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