Quem passar por um terreiro de umbanda e candomblé na Bahia vai conhecer uma das mais importantes pomba-giras atuando por lá, da falange das baianas e boiadeiras guerreiras. O canto que faz sua saudação diz: “eu tenho um nome tão lindo/ mas eu só uso em tempo de guerra/ quer saber o meu nome/ eu sou Maria/ mas não vão se confundir por aí/ porque eu sou Maria Quitéria/ dizem que ela é faceira/ formosa e guerreira”.
Até chegar a esse lugar no panteão das divindades conduzida pela cultura do povo, Maria Quitéria de Jesus construiu uma das mais belas trajetórias de mulheres guerreiras que se conhece. Não foi a única, como mostram as lutas pela independência do Brasil que se passam na Bahia desde os primeiros meses de 1822. Ali foi decisiva a participação de mulheres. Quarenta delas integraram um destacamento comandado pela negra baiana Maria Felipa, que entrou para a história por surrar soldados portugueses e por comandar o episódio no qual as mulheres de seu destacamento atearam fogo em 42 embarcações da metrópole. Outra líder foi Joana Angélica, até hoje um símbolo de resistência e bravura por ter sido assassinada à queima roupa ao se opor à invasão das tropas portuguesas comandadas pelo general Madeira no Convento da Lapa em busca de soldados baianos.
Mas nenhuma dessas mulheres ganhou tanta fama popular como Maria Quitéria, a heroína mais reverenciada até hoje não apenas como pomba gira mas também nas comemorações da Independência na Bahia, o chamado “2 de julho”. Nesta data as tropas brasileiras libertadoras entraram na cidade de Salvador e foram recebidas pela população com pompa e circunstância.
Seu nome de batismo é Maria Quitéria de Jesus, uma menina bonita com traços doces que nasceu provavelmente em 1792, no sítio do Licurizeiro, no arraial de São José de Itapororocas, hoje Distrito de Maria Quitéria, no sertão da Bahia. Filha primogênita do segundo casamento de Gonçalo Alves de Almeida e Quitéria Maria de Jesus, Maria Quitéria só seria batizada em 27 de julho de 1798, vivendo uma infância tranquila até os dez anos, quando sua mãe faleceu.
Durante cinco meses, Maria Quitéria ficou encarregada do cuidado da casa e de seus dois irmãos mais novos até que seu pai casou-se novamente com Eugênia Maria dos Santos, que morreu logo depois do casamento. Com esse novo falecimento, seu pai vendeu o sítio e comprou a fazenda Serra da Agulha a 80 km de Cachoeira. Como criador de gado e produtor de algodão, Gonçalo viu seus negócios prosperarem e casou-se novamente, dessa feita com Maria Rosa de Brito, tendo mais três filhos. Maria Quitéria e a última esposa de seu pai nunca se entenderam. Dona Maria Rosa de Brito não se conformava com o fato de que aquela menina preferia manejar armas de fogo, caçar, montar e domar cavalos a aprender a fiar, tecer, coser, cuidar da casa e preparar-se para o matrimônio. Havia até um pretendente, Gabriel Pereira de Brito, que não escondia sua paixão pela menina.
Pelos idos de 1822, um emissário das tropas brasileiras bateu à porta da fazenda do pai de Maria Quitéria para requerer dinheiro e voluntários à causa da Independência. Gonçalo Dias de Almeida desculpou-se com o visitante, afirmando que não havia como colaborar pois seus filhos homens ainda não tinham idade para os campos de batalha. Ao ouvir a conversa, Maria Quitéria para surpresa de todos se apresentou como voluntária para lutar contra as tropas portuguesas. O pai se irrita profundamente e passa um pito na filha diante de todos. Como uma mulher pretendia guerrear em frentes de combate nos quais só existiam homens rudes e truculentos?
Mas a jovem era dura na queda. No dia seguinte foi até a casa de uma irmã mais velha por parte de pai, Teresa, e pediu-lhe emprestado o uniforme de seu cunhado soldado, José Cordeiro de Medeiros, de quem também tomou o sobrenome emprestado. Após fugir da casa de seu pai para a vila de Cachoeira, dois dias depois Maria Quitéria alistou-se no Regimento de Artilharia travestida de Soldado Medeiros, com trinta anos, os cabelos curtos e devidamente trajada. Destacando-se pelo manejo com armas de fogo, logo depois jurou bandeira no Batalhão dos Voluntários do Príncipe, chamado de Batalhão dos Periquitos por causa dos punhos e da gola verde do uniforme.
Enquanto isso seu pai inconsolado procurava a filha desaparecida. Após duas longas semanas percorrendo as cercanias da vila de Cachoeira, Gonçalo Dias de Almeida descobriu toda a verdade. Contrariadíssimo, dirigiu-se ao quartel, revelou a verdadeira identidade do Soldado Medeiros ao comandante do Batalhão, major José Antônio da Silva Castro, e depois de reprovar publicamente a atitude de Maria Quitéria, implorou que ela voltasse para casa com ele.
Apesar dos apelos de seu pai ela manteve-se firme em sua decisão, sobretudo depois que o comandante de seu Batalhão a defendeu, alegando que nunca vira uma moça, apesar dos traços tão delicados, dominar com tamanha destreza o manejo de armas de fogo. A partir desse momento Maria Quitéria assumiu sua condição feminina frente ao batalhão sem precisar mais se passar por homem para ser respeitada. Para coroar suas conquistas o Conselho Interino, instalado na vila de Cachoeira em 6 de setembro, forneceu-lhe uma espada e dois saiotes escoceses que passaram a fazer parte de seu uniforme para evitar confusão com os demais. Espantada com aquela aparência a viajante inglesa Maria Graham, que se encontrou com Maria Quitéria no Rio de Janeiro, escreveu em seu diário: “que diriam a respeito os Gordons e os Mac Donalds? O traje dos velhos celtas, considerado um atrativo feminino!”.
(continua)
*O artigo foi originalmente publicado no livro História do Brasil para ocupados (2013)
Para saber mais
ABREU, Edite Mendes da Gama e. A mulher na Independência da Bahia: aspectos do 2 de julho. Salvador: Secretaria de Educação e Cultura, 1973
ALVES, FERNANDO. A biografia de Maria Quitéria de Jesus. Salvador, 1952.
SOUZA, Bernardino José de. Heroínas baianas. Rio de Janeiro; Brasília: Editora Paralelo/MEC, s.d.
VALIM, Patrícia. Maria Quitéria vai para guerra. In: FIGUEIREDO, Luciano. (Org.). História do Brasil para ocupados. 1ª ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013, v. , p. 236
Imagem: Câmara Federal
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