Mais um pouco de ontem..

‘‘Em um dia em que brincava com seu carro de rolimã na rua que passa em frente ao hospital de Bom Conselho – uma ladeira levemente inclinada, própria para as “malinagens” de meninos –, Chico ouviu os gritos de uma confusão que indicava que, finalmente, Bel fora capturado. Seus olhos estavam flamejando de alegria, internamente estava tão eufórico que largou seu carro de rolimã (que desceu ladeira abaixo, desgovernado) e se “desbanderou” para ver o cerco que fizeram àquele ladrão “famoso” em seu imaginário… “agora vou ver quem é esse nego descarado”… mas, na confusão, tomou um empurrão e caiu feito jaca na rua de paralelepípedo, ralando o cotovelo e o antebraço direito. Estava meio que abestalhado, surpreso consigo mesmo. Bel era um galego dos olhos cor do céu e não o nego “tifum”de quem Chico tinha uma raiva gratuita ou talvez solidária às vítimas daquele malfeitor. Ficou abismado, e aquele assombro revelava algo que ele não sabia, mas que o incomodava naquele mundo de menino. Era o quê? Não sabia direito, mas sentiu uma vergonha de si e de encarar sua avó’’.

Cultura, dentro da sua polissemia, se caracteriza por ser transmitida, transformada, imposta, sincretizada entre outros processos a partir do contato intersubjetivo. No Brasil achado do século XVI, as Companhias de Jesus ao assimilar elementos indígenas nos cultos católicos, o fez para posteriormente promover o genocídio cultural dos povos tradicionais com a imposição violenta da fé cristã.

Os vetores de comunicação – pinturas, escritos, as artes em geral… – retratam, reforçam, eliminam ou reformam os conteúdos culturais de uma sociedade. A cultura é fluída e heterogênea.

Vejamos.

Nos escritos bíblicos, Ló ofereceu suas filhas para um estupro coletivo aos cidadãos sodomitas, que desejavam ‘’conhecer’’ os dois anjos enviados por Jeová depois do pedido de Abrahão – cá entre nós, chato demais… – para que salvasse os ‘’justos’’, antes da cidade de Sodoma e Gomorra ser destruída.

Deste enredo, a sodomia passou a ser sinônimo da pratica de sexo anal – muito bom, por sinal – repreendida moralmente, sancionada criminalmente sobretudo nos países de base cristã, a exemplo do Ato de Sodomia de 1533 na Inglaterra ou a inconstitucional criminalização da pederastia no Código Penal Militar no Brasil.

Em Roma Antiga, o paterfamilias podia dispor da vida de uma criança do sexo feminino assim que nascesse, abandonando-a a morte, pois o culto familiar deveria ser mantido pelo filho homem. Nas sociedades de povos originários há casos de infanticídios contra crianças que nasceram com alguma deficiência ou frutos de relações incestuosas.

Sendo assim, em toda sociedade os mais vulneráveis são os alvos preferenciais da punição e da violência irracional sustentada por um suporte cultural que legitima tais práticas. Quando lemos o estupro de Pedro Bala, em ‘’Capitães da Areia’’, de Jorge Amado, contra uma menina na praia da Boa Viagem – se não me engano – ou quando o escocês Galileo Gall estupra Jurema, mulher de Rufino, e dentre tantas violências sexuais narradas em ‘’A Guerra do Fim do Mundo’’, de Miguel Llosa, nós temos um retrato do patriarcado virulento ainda presente, que fez já na vida real, o cangaceiro Zé Baiano matar Lídia, mulher forte do cangaço, por causa de uma traição.

Em tais obra não há uma apologia latente, tampouco explicita a violência, crimes ou supostas imoralidades, como o Estado Novo alegou para acender a fogueira nas imediações do Elevador Lacerda, alimentada pelo vários exemplares de ‘’Capitães da Areia’’.

A ideia é bem distinta do filme do mafioso bonitão.

Por outro lado, quando se tem a difusão de valores relacionados ao racismo, machismo, lgbtfobia, tais se alojam como vírus nas entranhas subjetivas, de modo que reproduzimos sem perceber a violência a que fomos submetidos. No trecho que destaco de um livro meu, antes de iniciar esta coluna, empresto ao personagem Chico, uma passagem que vivi numa cidade do semiárido baiano aos 15 anos, quando esperava ver o ‘’ladrão’’ preto, mas ele, para minha surpresa e espanto, era branco, foi o exemplo experimentado por mim e por aquela senhora que apertou a bolsa em Barrados no Baile de Edson Gomes, porque nos ensinaram que todo preto é ladrão.

O papel ético da arte, seja qual for sua expressão, é promover a remoção das formas de opressão.

Finalizo com a homenagem a Lídia, a todas as Lídias, e outras para que não tenham o mesmo fim, e sejam livre para amar como as Yabás, sem medo da morte.

Lídias

Um cabra do sertão
Preso em seu labirinto
Viu ferir seu coração
Com o beijo do bem-te-vi

O gemido de uma mulher
A maldade de Coqueiro
‘’Desfulô’’ o bem-me-quer
Que ardia em desejo
Em receber o que se dá
Em ser o que há pra ser
Sem amor
Com amor
Com o arfar…

Peleja da ignorância e o coração
No solo seco do sertão
Pereceu o amor
Escorreu a dor
Pelas mãos
Sem razão…

Imagem: Pedrinha Miudinha

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *