Sonhei que estava tomando uma taça de vinho com meu irmão Dinho. Acolá no Café Martinho da Arcada situado na Praça do Comércio em Lisboa, quase lambendo as orelhas do Tejo. Por acaso o maitre nos colocou sentados ao lado da mesa que era ocupada por Fernando Pessoa. Privilégio da casa, disse-me o senhor Pedro, porque poucos turistas brasileiros ouviram falar daquele tesouro português.
A multidão prefere ir ao Café A Brasileira. O delírio da banalidade é tirar uma foto sentado/a ao lado da estátua de Fernando e publicar imediatamente no facebook e no instagram. Aquilo é um café palha bem localizado. Possui estratégia de marketing eficaz para atrair a revoada de brazucas. Café ou bar possuem papel primordial na literatura. Seguindo a pegada do melhor poeta da língua lusitana, cito dois rubais daquela pessoa ligada nos bares da vida.
“Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta
Ora o vinho bebemos porque é festa.
Ora o vinho bebemos porque há dor
Mas de um e de outro vinho nada nos resta (1926)”
“Vivemos nas encostas do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono
Boa é a vida, mas melhor é o vinho
O amor é bom, mas melhor é o sono (1931)”.
O escritor e poeta Charles Bukowski era chegado num bar de fiofó sujo frequentado por operários, carteiros e prostitutas. Escreveu poesias em guardanapos rotos, turbinado por doses cavalares de whisky de segunda (gostava ainda de apostar em corrida de cavalos). Quase morreu de cirrose hepática, mas nos presenteou com uma obra anárquica, instigante e fascinante. Hemingway também era ligado num bar. Universalizou o mojito cubano e a Bodeguita del Medio. Todo brasileiro que vai a Havana toma um mojito na Bodeguita, mesmo que não tenha lido um livro do Papa Ernest…e que sequer lerá…
Durante as férias em Salvador, pretendo estudar A Sopa de Kafka, do fotógrafo e ilustrador Mark Crik. E tentar preparar algumas receitas como cordeiro ao molho de endro à moda de Raymond Chandler.
Difícil mesmo será cozinhar uma codorna recheada à Marquês de Sade, sem destruir as entranhas da pequena ave. No verão vale arriscar a sopa fria de missô, elaborada no ambiente de “O Processo”, de Kafka.
O japonês Haruki Murakami, apaixonado por jazz e cinema, foi sócio de Yoko (ex-esposa) no bar Peter Cat nos anos 70. Ele é fã de Billie Holiday, Chet Baker e Miles Davis, dentre outros. É simplesmente maravilhoso ler Kafka à Beira Mar ouvindo a play list das músicas citadas por Murakami, ao longo desse majestoso romance. O Café Rokujigen em Tóquio, tornou-se o ponto de encontro dos fãs de Haruki Murakami desde 2014, quando ele concorreu ao Nobel de literatura pela primeira vez.
Em Tóquio, dizem que é imperdível a visita ao restaurante temático Alice no País das Maravilhas. Se for a Washington DC e apreciar literatura e bons drinks, vale a pena dar uma esticada de metrô até Baltimore para passar o tempo no Anabel Lee Tavern. A música é da melhor qualidade, assim como os hambúrgueres da casa. Bela homenagem ao último livro de Edgar Allan Poe.
No Brasil, o bar povoa as discussões literárias. Também constituem espaços nobres de criação e realização de saraus e lançamentos no âmbito da prosa e da poesia. Durante a Jornada Nacional de Literatura Brasileira em outubro de 2017, promovida pela Universidade de Pelotas, houve uma concorridíssima ação chamada Livros na Mesa: Leituras Boêmias. Oportuna e vitoriosa sacada literário etílica do curador da Jornada, sem dúvida!
Sugiro a leitura de Contos para Ler no Bar, coletânea organizada por Miguel Sanches Neto. O autor reuniu escritos de Luís Fernando Veríssimo, Autran Dourado, Jorge Amado, Luiz Vilela e Marçal Aquino, entre outros. O boteco literário que me marcou profundamente é Bar Dom Juan, de Antônio Callado. Foi publicado em 1971 no auge da repressão da ditadura civil e militar. Como vivemos em tempo de supressão das liberdades e de corrosão das instituições democráticas, acredito que Bar Don Juan é um romance atual, assim como Não Verás Nenhum País, de Ignácio de Loyola.
Ando fissurado por uma mesa de bar. Duzentos e dez dias sem por os pés no boteco para tomar uma, jogar conversa fora, teorizar sobre a sexualidade dos anjos e demônios, ouvir a cantoria de Gadelha Neto Sérgio Duboc, Flávio Faria e Beth Fernandes, além de praticar halterocopismo até chamar Jesus de Genésio, ajoelhado diante de uma cerva bem gelada.
Estreia do Frango de Adrô no Cardápio do Centro Cultural Leão da Serra.
Foto de Lúcia Leão.
No ano passado tive a honra de experimentar o Frango do Adrô, recém incorporado no cardápio do Centro Cultural Leão da Serra, servido pelo amigo Vicente Sá, um dos melhores poetas, compositores e cronistas do Planalto Central. Durante isolamento social infinito, fazem-me falta os saraus e a sociabilidade orgânica e criativa da mesa do bar.
Adrô de Xangô
13/10/2020.
Imagem: Capa (Foto da mesa de Fernando Pessoa no Café Martinho da Arcada, em Lisboa – por Adroaldo Quintella)
Imagem interna: Estreia do Frango de Adrô no Cardápio do Centro Cultural Leão da Serra. Foto de Lúcia Leão.
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