Ojeriza, asco e a justificativa na natureza humana para tais sentimentos, é o que podemos interpretar do título em epígrafe, de uma frase ‘‘vomitada’’ criminosamente por um ex-apresentador de TV, o senhor Gilberto Barros, ao comentar o fato de encontrar dois homens se beijando de língua, quando saía para o trabalho. Bem… o pessoal da toga preta lá de cima, o STF, entendeu que homofobia é crime enquadrado na lei n° 7716/1989, mas nem assim essa gente se intimida em destilar seu ódio, disfarçado de piada.
Em outra pérola, vi em um vídeo a líder religiosa de nome… ‘‘não sei o que Valadão’’, não me lembro nesse momento, teorizar sobre a Aids e sua origem. Segundo a ‘‘abençoada’’, o vírus causador da doença surgiu das relações homossexuais, supostamente ‘‘pecaminosas’’, e que, inexoravelmente, resulta na morte do pecador, pois ‘‘o salário do pecado é a morte’’.
Poxa ‘‘coisinha’’ da fala de criança – tenho medo do povo que fala assim – você não explicou por que heterossexuais também contraem o vírus da imunodeficiência humana e por que há homossexuais, bissexuais, pansexuais… que sequer pegaram Covid-19, que dirás o HIV.
O pior destas obtusas declarações é o discurso de ódio, numa fala sonsa e violentamente sutil da pastora, e na gargalhada cretina e decrépita de um senhor supostamente hétero.
A homofobia adoece, mata e frustra sonhos. Recordo-me de um amigo que falava de sua orientação sexual em tom tão baixo, como se confessasse fazer parte de uma célula comunista em plena ditadura, apesar de estarmos ao redor de vários gay’s livres, felizes em explosões de beijos e gargalhadas ‘‘padilhentas’’ no Porto da Barra, em pleno verão de Salvador. Talvez, inconscientemente, ele ainda enfrentava alguns fantasmas, que intrusamente o perseguia. Ou seja, nem ali onde estávamos, numa república majoritariamente gay, ele estava a salvo.
Lembro da primeira lição de homofobia que tive no seio familiar, aos sete anos de idade. Mainha era uma mulher progressiva para os padrões da época, mas também não era de se esperar menos de uma mãe solo de duas meninas, que rompeu um relacionamento abusivo, mesmo com a pressão de sua família para suportar o sofrimento que supostamente ‘‘Deus’’ uniu – coitado de Deus, o botam em cada ‘‘laranjada’’. Mas ela, filha de Oyá, não comeu esse regue, tinha um quilombo de mulheres que a apoiava – depois eu conto esse lance. Ah… hoje ela é crente, mas já foi do babado, comeu muito caruru de Cosme e Damião.
Encontrou meu pai, aliás, um excelente pai, porém mais do mesmo, na verdade um ‘‘kinder ovo’’ do machismo.
Noelia, minha mãe, tinha uma amiga travesti, não lembro o nome, que andava com uma calça de onça em meios aos ‘‘fiu-fius’’ lá na rua da Mouraria, onde a gente morava. A amiga de mainha era muito alegre, tipo uma Hebe Camargo, porém tinha um temor no ar em sua passagem, por conta de um assassinato que ela cometera na Barroquinha, um terminal de ônibus aqui de Salvador. Aliás o centro da cidade de Salvador tinha alguns personagens míticos, como a ‘‘Mulher de Roxo’’, dizem que foi ex-freira ou ex-noiva, era tanta história; o velho ‘‘Já Morreu’’ – um senhor que xingava ‘‘deus e o mundo’’ cada vez que alguém gritasse sua alcunha – ‘‘Oh ‘Já morreu’’, ele respondia, ‘seu pai aquele corno’’ ou coisas do tipo; o artista plástico meio cyborg, ‘‘Jaime Figura’’.
Um dia sentado na janela, ela passou e falou cheia de presepada com mainha, como sempre fazia, e me deu um beijo no rosto. Corri alegremente para contar sobre o afago a um macho hetero da minha família, com a mesma ingenuidade e naturalidade que falei um dia, que catava guimba de cigarro de meu pai para fumar, rsss, gostava de imitar o veió.
Este meu parente, olhou pra mim e disse: você vai morrer de Aids igual a Cazuza!
Eu, em 1990, uma criança de sete anos, não sabia exatamente o que era Aids; sabia que aquele homem da televisão morreu de Aids, e eu não queria morrer, nem ficar longe de Cindhy, minha primeira cadela, nem de mainha e de meu pai.
E qual era o ‘‘antídoto’’ para não morrer? O escroto me deu uma palha de aço e mandou esfregar no meu rosto, bem no local do beijo. Assim o fiz, até o momento que mainha chegou, viu aquela cena medieval e socorreu-me daquela tortura de um psicopata.
Os amigos gay’s de Noelia, ‘‘Gut-gut’’ que ajudava ela na faxina lá de casa – lembro do seu cabelo de fogo, era muita onda… –; Alex, que até a metade da década de 1990, jurava que era ‘‘homi’’, segunda as palavras dele – um dia, eu já taludo, o encontrei em frente ao Colégio Central, já liberto e assumido, diga-se de passagem, um macumbeiro de mão cheia – e outros da minha religião, como a travesti Tica, uma abiã rebelde, filha de Iansã e Omolu; todos elxs me fizeram ser menos homofóbico, ao ponto de me incomodar com as palavras da religiosa e com frase cretina daquele veió.
Se eu tenho salvação, e posso melhorar, você também pode ter salvação em um Jesus amoroso e plural, expresso no ‘‘Jesus preto’’, ‘‘Jesus ladrão’’, ‘‘Jesus pivete’’, todos os Jesus da música do grande compositor Chocolate da Bahia, e diria eu também, o Jesus gay, travesti e sapatão.
Ah… lembra de Madalena?
Imagem: Junião
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