Durkheim quando fala sobre o crime o define como fato normal que possui uma função positiva na sociedade. Alguns alunos meus inicialmente demonstram uma contrariedade a esta definição, por a assimilarem na ‘‘caixa dos peitos’’. Crime ou desvio é fato valorado politicamente como inaceitável, diante de uma escala de valores sociais, e que inexoravelmente vai estar presente em toda em qualquer sociedade, ou seja, alguém vai transgredir pois vivemos numa sociedade de imperfeitos, nas pegadas durkheimianas.
Quanto à função positiva do crime, é que ele uma vez cometido, as pessoas vão se solidarizar e reforçar os valores daquele grupo político. A questão é quando o índice de desvio se agiganta e não mais reforça a solidariedade entre os indivíduos.
Aí qual radiografia que se observa em nossa sociedade? As pessoas repudiam o estupro, a violência moral – xingamentos, humilhações… –, psicológica, patrimonial contra a mulher, mas toleram e relativizam estas mesmas práticas no seu entorno familiar, trabalho, rodas de amigos. Temos um histórico cultural de machismo e violência patriarcal, cujo enfretamento cada vez mais se torna robusto.
Entretanto, são tantas mulheres, meninas, abusadas, que passaram por uma situação de violência na sua infância, que de repente em relatos eu vou constatando o quanto é comum tal realidade, não é uma tragédia isolada. Eu constato que é assustador o quadro de tantas violações contra mulheres e crianças, sobretudo, as meninas, e entro em parafuso com a sentença de Durkheim.
A solidariedade é reforçada em torno de um crime de estupro contra mulher, somente quando foge dos protocolos aceitos socialmente, ou ainda quando a vítima, segundo o juízo de valor político desta nossa sociedade, não ‘‘contribuiu’’ ou ‘‘consentiu’’ para que seu corpo e alma fossem violados. Dentro destes parâmetros a violência sexual é relativizada, romantizada e a culpa transcende para a vítima.
Uma tragédia se abate sobre uma criança, e aí grupos religiosos e oportunistas com aspiração política, estão pouco preocupados em repudiar o estupro, ou travar uma discussão séria para o enfretamento desta cultura, e sequer se ocupam no apoio a vítima que está envolta numa tragédia, que já a condenou por resto da vida, infelizmente.
Quem passa por um trauma sexual carrega seqüelas quase que insuperáveis, e a coisa se torna bem mais crítica quando tal se dá na tenra infância.
As energias desprendidas na porta de um hospital para hostilizar uma criança vítima de um estupro desde o seis anos me instigam espanto, raiva diante destas espécies de seres humanos… mas este é o retrato esquizofrênico de uma sociedade, formada por ‘‘Saras’’, ‘‘Elianas’’ e demais, que por oportunismo doente, perversidade – como da professora Eliana – ou obtusa leitura cristã – pois Cristo não estava condenando aquela criança – informa um quadro de anomia preocupante.
Imagem: Ribs
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